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Han Solo é a prova de que a Disney se valida somente em nostalgia

Novo filme Star Wars remete aos clássicos apenas para sabotá-los

atualizado

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CONTÉM SPOILERS DE HAN SOLO: UMA HISTÓRIA STAR WARS

Logo após terminar de assistir a Han Solo: Uma História Star Wars, uma coisa ficou martelando na minha cabeça. Há uma (pequena) semelhança entre o plot romântico – do trambiqueiro galáctico com a poderosa Qi’ra, tão “sofisticado” e “surpreendente” – e um modesto gibi de Star Wars publicado na primeira fase da franquia com a Marvel, ainda em 1982.

Trata-se da curiosa história Shadeshine!, publicada em Star Wars Annual número 2, que se tornou um pequeno clássico da hoje desconsiderada e apócrifa primeira franquia da série de filmes em quadrinhos. O roteiro, bem aventuresco e simpático, está nas mãos de um jovem David Michelinie, enquanto a arte é de responsabilidade do já veterano (e sempre duro) Carmine Infantino.

Aqui, num clima meio Conan, em eventos que se passam antes do Episódio IV, Solo e Chewie vão parar numa civilização barbárica governada por um déspota (chamado Satab) portador de uma substância muito poderosa, a sansanna. O desenrolar da aventura não interessa muito, exceto pelo fato de Han provisoriamente se apaixonar por uma mulher do alto escalão de Satab (Chrysalla), casada (a contragosto) com o tirano por simples comodidade.

Han se apaixona por uma mulher subjugada por um tirano

 

Esse plot lembra muito a estranha relação que se estabelece entre Han e Qi’ra no filme, quando a personagem interpretada por Emilia Clarke se encontra em encruzilhada semelhante diante de Dryden Vos. A diferença, é claro, está no destino das heroínas: enquanto Chrysalla, mais afeita a um cinemão clássico chauvinista, sacrifica-se para garantir a partida de Solo, Qi’ra, empoderada, dá um golpe no contrabandista e (não sem o coração ferido) se alia aos Sith.

Conto essa anedota não apenas para demonstrar uma certa padronagem para arquétipos masculinos e femininos em mitologias como a de Han Solo – o mesmo velho argumento, agora com uma roupagem que atende a demandas morais contemporâneas –, mas também para falar a respeito de como a Disney vem transformando Hollywood num cinema de um gênero só. Ou um gênero que vale por todos.

Qi’ra: arquétipo atualizado

 

O grande assalto
O cinema clássico de Hollywood (feito entre os anos 1930 e 1950) fundamentou muito de sua lucratividade com a divisão dos filmes em gêneros, que, logo, podiam ser direcionados a idades e públicos distintos. O cinema moderno (a partir do início da Nova Hollywood, nos anos 1960) modificou bastante a pureza dessas modalidades fílmicas, mas, até muito recentemente, ainda era possível identificar as variações nas formas internas e externas desses estilos.

 

O que a Disney geralmente faz é verter os atributos do gênero em hipernarrativas modulares que sejam comportadas por filmes de super-heróis, fantasia ou space opera. Vejamos o caso de Solo: existe uma evidente aproximação com o faroeste, algo considerado como uma “sincera homenagem” do estúdio ao modelo mais popular do cinema na primeira metade do século 20.

Abundam, portanto, referências a Sergio Leone, Rastros de Ódio, Maverick, Tombstone, etc. Na minha opinião, não passam de meros recursos pontuais repetidos que reforçam a sensação de déjà vu a cada cena, a cada plano. O mesmo ocorre com as citações à própria mitologia Star Wars, tratando o público como um toddler que precisa ficar dizendo “de novo” para cada motivo inventado para a saga.

Han Solo parodia a cena final de Rastros de Ódio

 

Não achei Solo particularmente ruim. Trata-se de entretenimento eficiente, como todo produto Disney. Porém, fica a sensação de que o estúdio está tentando converter todo o cinema naqueles seus antigos quadrinhos de paródia nos quais o Pato Donald e o Pateta interpretam super-heróis. É um deglutidor de gêneros, como se fosse o Alien se fundindo ao seu hospedeiro depois de contaminá-lo. Assim, o Homem-Formiga vira um heist movie. Capitão América: Soldado Invernal vira um thriller de perseguição. Solo vira um faroeste com pitadas de filmes de guerra.

O cinema da Disney virou os seus quadrinhos

Curiosamente, a intenção da Disney parece ser a eterna homenagem, como se prestasse algum tipo de respeito à história do cinema enquanto aniquila sua tradição. Em Solo, há aquela cena, ao mesmo tempo magnífica e enfadonha, do assalto ao trem carregado de coaxium. Longa, extenuante, tão intensa que perde sua intensidade – ela remete ao início do cinema, quando O Grande Assalto de Trem (1903), dirigido pelo lendário Edwin S. Porter para a companhia de Thomas Edison, ajudou a fundar o gênero do faroeste e também o próprio encadeamento narrativo fílmico.

O Grande Assalto de Trem auxiliou na definição de diversos paradigmas para o cinema. O clima da perseguição, que fomentou a continuidade fílmica e a montagem paralela, influenciou, por exemplo, Griffith. Mas o mais importante é pensar no quanto esse e outros filmes de uma era pré-hollywoodiana moldaram o imaginário sobre um (ainda existente) velho oeste que unificou os EUA dentro de um imaginário comum.

Desta forma, o papel do faroeste foi não apenas alinhar a narrativa no cinema, mas também dar sentido a um mito de origem americano. A homenagem aos primórdios do gênero é válida, mas não deixa de ser cruel ironia. Assim como Han repete, em Solo, a paixão impossível pela mulher de um déspota (demonstrando que esse imaginário não mudou tanto assim, de 1982 para cá), a Disney assalta Hollywood com essa nostalgia de sua era clássica ao mesmo tempo dando cabo de tudo que era fascinante nela. O faroeste funda o cinema, e o faroeste acaba com o cinema.

O Grande Assalto de Trem: matriz para linguagem e imaginário do cinema americano

O que era diverso se torna mero estilema para servir à padronização high-concept do estúdio. Fábrica de salsicha, enfim. Nesse sentido, vale trazer de volta o velho filósofo Guy Debord: “A especialização das imagens no mundo se realiza no mundo da imagem autonomizada, no qual o mentiroso mentiu para si mesmo.”

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