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Conheça Titeuf, o amado personagem que Bolsonaro criticou na TV

Fruto de uma longa tradição dos quadrinhos, a criação do cartunista Zep é um importante elemento para entender o mundo contemporâneo

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Quando Charles Schulz criou os Peanuts (Turma do Minduim), no longínquo ano de 1950, seguia uma linhagem de tirinhas que privilegiavam o olhar infantil sobre a realidade, como Little Orphan Annie (Aninha, a Pequena Órfã) e Gasoline Alley. Magistrais, narrados nos jornais como longas e intermináveis novelas, esses quadrinhos colocavam as crianças numa posição de indagação em relação ao mundo em que viviam.

Eram tiras cotidianas que remetiam ao mundo adulto, às vezes dramáticas até as últimas consequências, mas que buscavam emular a dificuldade do universo infantil ao começar a desbravar as complexidades da realidade.

 

Schulz, com seu alter ego Charlie Brown, seu cãozinho Snoopy e uma gama de crianças interessantes e interessadas, eliminou os adultos dessas narrativas. Aqui, apenas a abordagem infantil interessava, e perfis psicológicos e sociais desses personagens antecipavam os neuróticos que eles viriam a se tornar no futuro. Essa leitura do olhar infantil (que nunca se destinou, em primeiro lugar, à leitura feita pelas próprias crianças) se opunha a outra visão difundida nas tiras da época: aquela das crianças endiabradas, irracionais, pulsionais, como Sobrinhos do Capitão e Buster Brown (Chiquinho).

Essa oposição, tratada na primeira era dos quadrinhos, entre a criança que antecipa o adulto e a que margeia a animalidade, é fundamental para entendermos a polêmica causada quando o presidenciável Jair Bolsonaro apontou, na televisão, um livro (Aparelho Sexual e Cia) com os personagens da série em quadrinhos franco-suíça Titeuf, acusando-o de estar sendo distribuído em escolas, parte de um famigerado “kit gay”.

A história reverberou e fiquei pasmo ao ver um quadrinho excelente, que dá continuidade a esta rica tradição mencionada acima, sendo usado, de maneira escalafobética, como instrumento político em patamar nacional, numa narrativa cheia de mentiras. Minha ideia não é me estender nisso, porém, fiquei com vontade de reler os dois primeiros álbuns de Titeuf e procurar lembrar de como exatamente ele aborda a questão da sexualidade.

 

É bom deixar claro: não estou analisando o livro Aparelho Sexual e Cia, que não é em quadrinhos e utiliza apenas os personagens do universo de Titeuf, criado pelo cartunista suíço Zep (em texto da autora francesa Hélène Bruller) para explicar coisas sobre funções sexuais e amorosas (incluindo seus perigos e contradições) para pré-adolescentes. Vale lembrar: jovens geralmente aprendem “na rua” (hoje, na internet) informações deturpadas e carregadas de estigmas e preconceitos sobre esses temas. Quisera eu ter lido um livro assim quando era um reles “tween”.

Zep (Philippe Chappuis) criou Titeuf em 1992. Quadrinista prolífico que publica desde o final dos anos 1970 e sempre associado a discussões sobre política, sexualidade e rock and roll – seu apelido é uma abreviação para o grupo Led Zeppelin –, ele já tinha rodagem pelo mundo das bande dessinées (passara pelo Jornal do Spirou e pela revista de humor Fluide Glacial) quando estreou o famoso e traquinas moleque de topete loiro.

Titeuf se tornou um gigantesco sucesso na França. Até agora foram 15 álbuns lançados e quase 20 milhões de exemplares vendidos. Virou desenho animado, longa-metragem e o escambau.

 

Relendo esses primeiros volumes da série, publicados em 1993 (no Brasil saíram pela editora Vergara e Riba, sem muito sucesso), percebemos que a visão imprimida por Zep sobre o universo infantil deriva sim de Schulz, porém, sem a dosagem “adulta” de política (como na Mafalda de Quino) ou de filosofia (como em Calvin e Haroldo), e até mesmo sem a melancolia de Charlie Brown.

Titeuf, sim, constrói um conflito entre um enquadramento infantil e outro adulto sobre qualquer coisa (principalmente o sexo), a partir de situações (e não reflexões profundas) que evidenciem esse contraste, perceptível na fala, no vocabulário, nas ações e no convívio interno desses meninos. Temas como gravidez, AIDS, drogas e todo tipo de peculiaridade sobre o sexo emergem diferentes, como se transformados pelo olhar “alienígena” da criança.

 

São hilárias, por exemplo, as aulas de educação sexual (ministradas por uma senhora septuagenária), que os pré-adolescentes, estimulados por todo tipo de imaginário maluco sobre essas coisas, classificam como “tão tediosas quanto as aulas de geografia”. Esse tipo de comparação situacional, na verdade, revela os decalques estranhos da própria relação dos adultos com o sexo, incapazes de tratar com naturalidade aquilo que os move, sempre cercando o desejo com rituais e tabus incompreensíveis aos olhos desautomatizados das crianças.

Peanuts, Mafalda, Titeuf e tantos outros quadrinhos procuraram usar o olhar infantil como instrumento para deflagrar contradições que são invisíveis aos olhos naturalizados da sociedade. Em uma tira particularmente genial, Titeuf questiona diversos adultos sobre coisas como “o que é um aborto”, “o que é um sadomasoquista”, etc., recebendo sempre a mesma resposta: “você vai saber quando crescer”.

 

Aqui fica claro o teor contestatório desse quadrinho, procurando nos alertar que a omissão e falsificação de um mundo complexo, para as crianças, pode gerar adultos desinformados e incapazes de refletir sobre as condições da vida. Néscios capazes até de sentar na cadeira de presidente.

Titeuf não é e nunca foi direcionado às crianças (ao contrário do livro mencionado), mas é uma obra que ajuda a eliminar a ideia equivocada, extraída do senso comum, de que elas não interpretam o nosso mundo e ignoram irracionalmente toda ordem social. Neste sentido, quadrinhos como este providenciam um verdadeiro iluminismo infantil, demonstrando que nossos filhos não são bestiais, mas, ao contrário, podem se comportar até como verdadeiros filósofos.

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