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Será que a menina-pastora da Rodoviária é feliz?

Tem uma menina-pastora que canta e prega a palavra de Deus na Rodoviária. Ela grita versículos decorados e canta hinos de louvor, enquanto adultos que a acompanham recolhem dinheiro de voluntários comovidos. Eles também vendem CDs caseiros com a pregação gravada. Não têm ponto fixo: ora estão na Plataforma Superior ora na Inferior. Acho que temem […]

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menina pastora
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Tem uma menina-pastora que canta e prega a palavra de Deus na Rodoviária. Ela grita versículos decorados e canta hinos de louvor, enquanto adultos que a acompanham recolhem dinheiro de voluntários comovidos. Eles também vendem CDs caseiros com a pregação gravada. Não têm ponto fixo: ora estão na Plataforma Superior ora na Inferior. Acho que temem uma intervenção do Conselho Tutelar. Os homens que acompanham a menina-pastora parecem assustados.

Ela fala de um deus cheio de ódio aos que não seguem a escritura sagrada. Exalta-se e lança aos ouvintes as piores consequências, caso eles não temam ao seu ser divino.

A menina-pastora não tem energia de menina. Veste-se como uma adulta que frequenta cultos evangélicos aos domingos. Usa cabelos presos e um vestido nos joelhos. Tem uma bolsa singela de um dos lados e uma tiara nos cabelos

Não consigo ver a felicidade em seus olhos nem quando ela canta. Aliás, ela não tem dom para o canto. Desafina em seus agudos mais rasgantes. Muitas pessoas choram e ficam comovidas com as mensagens. Uma mulher tira o celular da bolsa e filma enquanto as lágrimas escorrem descontroladas. Há alguns vídeos dela no YouTube. As pessoas a filmam como se a garota fosse uma atração urbana.

Eu me inquieto com o destino dessa menina. Como será que ela se tornou uma pastora? Será que sentiu desejo para pregar tão livremente? Não sei. Os olhos dos adultos que tomam conta dela parecem tão aflitos. Quando ela toca nos CDs à venda, eles fazem sinais nervosos. Ela retoma às vendas com mais vigor.

Não tive coragem de filmar ou fotografar a menina-pastora. Essa foto dela de costas encontrei na internet. Mas senti um desejo de falar com ela. Ela terminou a pregação e me dirigi para colocar um dinheiro numa caixa de doações. Perguntei ao adulto se poderia falar com a garota. Ele me disse que não. Perguntei ao adulto se ele era o pai da garota. Ele me disse que sim. Saiu para o fundo e continuou a me vigiar.

Criei coragem e fui até a menina-pastora. Perguntei: “Você é feliz?” Ela me disse que sim. Perguntei: “Você estuda?” Ela me disse ‘a Bíblia”

Fui convidado a me retirar de perto da menina-pastora. Rapidamente, os adultos fecharam a roda e saíram discretamente. Resolvi olhá-los de cima da Plataforma Superior. Eles seguiram sentido Esplanada dos Ministérios. Embaixo, vi uma outra menina que vende guloseimas perto da Pastelaria Viçosa olhar para a menina-pastora. Presumo que elas se enxergaram. Será que sorriram uma pra outra? Será que queriam brincar uma com a outra? Duas meninas aparentemente sem infância.

A Rodoviária está cheia de meninas vendendo guloseimas, água e frutas. Mas só tem uma pastora. Era fim de tarde e, logo, um grupo de voluntários cristãos apareceu oferecendo maçãs e sanduíches gratuitamente para todos. Uma fila se formou. A menina das guloseimas da Viçosa não quis entrar na disputa. Ficou a distância vendo tudo. Uma jovem mulher instalou sua caixa de som e um microfone e começou a cantar. Ao contrário da menina-pastora, ela era tão afinada, a sua melodia doce era sobre Cristo bom e redentor, num tom que não levava a sua voz ao desespero nem ao medo.

Desci. Fui tomar um caldo de cana e comer um pastel de queijo enquanto aquela jovem mulher entoava belos hinos cristãos num tom afinadíssimo. Pensei que aquela jovem teve uma infância, estudou, brincou e foi feliz como menina. Ela trazia essa tranquilidade em sua voz. A fé que transmitia parecia mais uma escolha do que uma imposição.

Antes de partir e seguir o meu caminho, fechei os olhos e, ao som angelical da jovem mulher, desejei uma vida mais doce para a menina-pastora. Na saída, comprei uma pastilha da menina das guloseimas. Ela sorriu pra mim. Que os deuses guardem essas meninas!

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