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Podemos ser felizes num carnaval sem turbantes e músicas incorretas?

Massacradas durante o ano inteiro, as minorias têm o direito de clamar por um carnaval com mais respeito e tolerância

atualizado

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A festa da carne, dos delírios, dos beijos roubados e sem dono está ficando cheia de regras. No Rio de Janeiro, alguns blocos estão banindo marchinhas politicamente incorretas enquanto movimentos sociais questionam a apropriação cultural (no cotidiano e nas fantasias) de símbolos caros para suas lutas, como o turbante das mulheres negras do Ilê Aiyê, que ilustra esta coluna.

Há quem ache tudo isso muito chato e saía por aí cantarolando a belíssima ,e impositiva “Máscara Negra”:

Vou te beijar agora. Não me leve a mal. Hoje é carnaval

Na sua gênese, o carnaval é a libertação das amarras cotidianas. Na dança da carne, sempre valeu tudo o que não se podia fazer durante o ano. Sou de Salvador e a gente desde criança, sabia que os gays podiam sair dos seus quartos escuros para se beijar, sem problemas, nas ruas em dias de carnaval. Nos anos 1970, era na Praça Castro Alves. Nos 1990, na Barra. Nos 2000, dentro dos blocos e ao som de Daniela Mercury e Margareth Menezes.

 

Zahir Company/Divulgação
Daniela Mercury comando bloco onde gays são muito bem-vindos

 

Nos velhos carnavais baianos, os negros, também massacrados em seus subempregos diários, tinham o direito de se vestirem de reis e rainhas no Ilê Aiyê, no Muzenza, no Olodum (em que pese uma massa continuar puxando as cordas para a elite branca em troca de uns trocados por dia de folia).

Alguns comportamentos costumam ser exacerbados na farra momesca. O malicioso “fiu-fiu” dos homens para as mulheres nas ruas se transformavam em mão na bunda, nos seios e em amassos forçados. Cresci, em Salvador, vendo bando de homens cercar mulheres na avenida para fazer uma espécie de arrastão pelo corpo. Um estupro sem penetração.  Era criança quando soube, certa feita, que, um bloco de homens travestidos de índios, como bárbaros, atacou um cordão só de mulheres que queriam simplesmente ser livres para brincar entre elas, nos anos 1970.

Passamos nos últimos anos por profunda transformação social e reorganização das minorias históricas no Brasil: as conquistas cotidianas de acesso do negro à universidade (as cotas), a criminalização da injúria e do racismo, a Lei Maria da Penha, o Estatuto da Criança e do Adolescente, as leis de acessibilidade para pessoas com deficiência, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, o respeito e entendimento da complexa questão de gênero e a consciência feminista.

Chegamos ao século 21 como um país em completa transição entre as tradições arcaicas (muito arraigadas a um pensamento religioso) e novas formas de empreender os direitos humanos.
Essas vozes críticas, antes contidas em seus campos invisíveis, vão brincar o carnaval e precisam ser ouvidas. Mesmo que lhe pareça arrogante e chato alguma mulher negra reclamar de um turbante na cabeça, é preciso se colocar no lugar de quem sempre foi massacrado dentro e fora da folia.

Não é crime cantar uma marchinha criada num contexto em que o Brasil acreditava que o cabelo do negro era ruim. Melodicamente, aliás, essas canções são lindas. Mas hoje é complicado fazer coro para o verso “mas como a cor não pega mulata, mulata eu quero seu amor”.

 

O beijo histórico de “Amor à Vida”

 

Ao fazer uma campanha para deixar essas canções no passado ou pedir para que não se fantasie como um “negro exótico”, a militância está pedindo para que o folião entenda que se o cotidiano liberou regras (gays podem casar e demonstrar o amor até em novelas) e criminalizou comportamentos, como o de forçar um beijo de uma mulher, o carnaval requer outras libertinagens.

Não é que ficou chato. Ficou apenas mais justo. É só botar o bloco na rua ao som de marchinhas contemporâneas como “Bom Dia”

 

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