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Wagner Hermusche em busca de pontos de luz na escuridão

Algumas pinturas desses período, final dos anos 1980 e meados da década seguinte, permaneciam até alguns meses atrás enroladas no depósito

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1 de 1 foto de abre - Foto: Bernardo Scartezini/Metrópoles

Uma série recente de desenhos de Wagner Hermusche, em cartaz no Museu Nacional Honestino Guimarães, amarra o conceito de sua mostra “Ruídos”. Em telas de grandes formatos e nas cores vivas que lhe são peculiares, o artista brasiliense busca representar em episódios alegóricos a difusa atmosfera de descontrole e confrontamento, intolerância e violência tão marcante na vida pública brasileira destes últimos cinco, seis anos.

No entanto, ao encontrar o artista no Museu Nacional para esta conversa sobre sua recente obra, podemos puxar o fio dessa atual narrativa bem lá para trás, remontando a um período chave da carreira de Wagner Hermusche, quando ele foi passar três meses na Alemanha para montar uma exposição própria e acabou ficando quinze anos naquele país.

Algumas pinturas desses período, final dos anos 1980 e meados da década seguinte, permaneciam até alguns meses atrás devidamente enroladas e estocadas no depósito de uma amiga de Hermusche na Alemanha. Para a realização desta mostra no Museu Nacional, elas se mostraram apropriadas para que seu autor ampliasse o panorama de seu trabalho e clareasse suas intenções.

Logo na primeira sala da exposição no Museu Nacional, a pintura “Video Game” (1992), justamente representando essa fase germânica de Hermusche, parece pulsar para fora de seus dois metros quadrados, atraindo o olhar do visitante através da sala.

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Hermusche conta que, ao desembarcar na Alemanha, os experimentos com arte e tecnologia estavam no auge e seus colegas se viam todos fascinados pela informática e por traquitanas eletro-eletrônicas como os primeiros computadores da Apple. Enquanto artistas como Nam June Paik, Bill Viola e Mary-Jo LaFontaine se lançavam a vasculhar essa fronteira, ao interesse de Hermusche falavam mais alto Georg Baselitz e toda a tradição de pintura da então Alemanha Oriental, além de pintores em atividade nos Estados Unidos que trabalhavam em grandes formatos, como Frank Stella e Willem de Kooning.

Wagner Hermusche se via então como uma figura um tanto exótica na Hamburgo daqueles dias. E não apenas por sua afeição à pintura. “Sou descendente de orientais, então para eles era visto como um oriental. Era visto como homem japonês, um artista que nasceu no Brasil e falava muito bem o alemão, quase sem sotaque”, enumera Hermusche. “Logo, eu era uma figura muito interessante para eles terem por perto, para a sociedade alemã poder se sentir mais arejada graças a pessoas assim. Fui muito respeitado.”

Esta questão multirracial e multicultural, que Hermusche enxergava tão cara à sociedade alemã, logo se tornou cara a ele próprio em particular. E suas telas desse período, como agora podemos ver na exposição, trazem elementos muito brasileiros (e nada germânicos) como tamborins batucados por mãos de pele negra.

“Video Game”, assim, traz um pouco de tudo isso. A menina que ocupa o centro da tela é a filha de um casal multiétnico de amigos, um alemão com uma mineira. Hermusche pediu que a criança posasse para ele jogando videogame.

A partir de sua figura, devidamente fotografada naquele instante e depois pintada com o máximo de técnica e realismo que Hermusche conseguiu, o pintor compôs todo o fundo por pura imaginação, associação de ideias Ele compôs a cena exatinho como fazia antes ao ser diretor de arte para cinema aqui em Brasília. Pintou um tapete indígena brasileiro sob a menina, ao lado dela largou um espelhinho de plástico bem infantil e, lá na parede do fundo, abriu imensa janela para a natureza – um restinho da floresta tão cultuada pela arte alemã.

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A essa série de trabalhos de Hamburgo, Wagner Hermusche chamou de “Sociedade Cultural Informatizada”, ou simplesmente “Multikulturelleinformationsgesellschaft” em um único polissílabo alemão. Aqui no Museu Nacional, ela se estende no saguão de entrada da exibição. E, mais para diante, o imaginário do artista se desdobra em num par de salas dedicadas à série “Ruídos Contemporâneos”.

Todo aquele fotorrealismo, que tinha feito Wagner Hermusche usar pequeníssimos pincéis para pintar os cílios de sua personagem, ficou pelo caminho de lá para cá – e foi substituído por uma atmosfera quase de cartum ou de mangá, conforme compara o próprio artista.

“Vigilante” (2011) serve como legítimo representante dessa safra. A tinta acrílica da série de Hamburgo foi aqui em Brasília trocada por pastéis oleosos. O preto absoluto do papel craft sendo o fundo universal sobre o qual surge a cena. “Estes desenhos são elaborados num procedimento inverso das pinturas. Aqui tenho o escuro e vou botando meus pontos de luz”, descreve Hermusche.

As cores e os traços, que parecem atravessar o papel preto, são bem familiares aos brasilienses. De imediato, elas remontam à série “Das Noites Brasilianas”. Aquela coleção produzida pelo artista ao longo de duas décadas e que hoje é comercializada por ele em reproduções no seu empório na comercial da 413 Norte, diante do Parque Olhos D’Água.

São cenários noturnos da capital federal onde despontam as longas pistas do urbanismo de Lúcio Costa e marcos urbanos como a fachada do Conjunto Nacional. Mas, ao menos desta vez, nossa tão conhecida paisagem brasiliense ganha pequenos incômodos, pequenos ruídos. Quem é essa mulher de pistola na mão?

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Talvez uma resposta para essa pergunta esteja nas outras tantas peças da mesma série. Nelas, a tensão de “Vigilante” se resolve em conflito aberto, no meio da rua, numa série de alegorias que antecederam e ultrapassaram os movimentos sociais de junho de 2013.

Mas outra resposta possível para essa mesma pergunta talvez esteja em outro lugar. Entre as salas do Museu Nacional que couberam a esta exibição de Wagner Hermusche, e aqui podemos completar nossa visita, encontramos um ambiente uterino. Uma sala de paredes escuras e mínima iluminação.

Aqui estamos, ao mesmo tempo, de volta à Alemanha e estamos dando mais um passo para dentro da cabeça do autor. “Cena Urbana” (1989) é uma das três pinturas que ocupam esse espaço. Hermusche conta que, naquela época, estava abandonando um recente interesse pelo expressionismo abstrato para voltar a se dedicar à figuração.

Ele lia a revista The Economist toda semana e daquelas páginas do jornalismo economês surgiu o cenário distópico de sua pintura. “Peguei aqueles gráficos e indicadores da economia para fazer uma paisagem urbana, meio Times Square, me referindo a essas grandes corporações mundiais que regem nossos dias.”

Ali podemos apontar o que Wagner Hermusche chama de “core” de seu pensamento. O centro nervoso. O núcleo de temas, de linguagens e de interesses que ele vem abordando, vem tentando resolver a cada nova obra, a cada investida, a cada vez que toma o crayon em mãos.

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