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Viagem pela arte contemporânea na coleção de Sérgio Carvalho

Um bocadinho dessa coleção está agora em cartaz no Museu Nacional Honestino Guimarães

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1 de 1 foto de abre (1) - Foto: Bernardo Scartezini/Metrópoles

Sérgio Carvalho, advogado brasiliense, levantou uma espetacular coleção particular em pouco mais de quinze anos. Segundo cálculos recentes, seu acervo passa de 1,9 mil obras de arte. Há tempos que já não cabe mais em sua residência, claro. Carvalho precisou distribuir suas peças também em duas reservas técnicas e nas casas de amigos.

Um bocadinho dessa coleção está agora em cartaz no Museu Nacional Honestino Guimarães. Não é a primeira vez que o acervo de Sérgio Carvalho ganha esse tipo de destaque. Já alimentara mostras em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Aqui em Brasília, há um par de anos, tinha ocupado três andares do Museu dos Correios.

Desta feita, 420 obras da coleção de Sérgio Carvalho se espalham pela parte mais nobre do Museu Nacional: todo aquele amplo salão principal, mais o mezanino. A mostra foi levantada sob curadoria de Tereza de Arruda, profissional com trânsito frequente entre Brasil e Alemanha.

Tereza de Arruda teve a ideia de dividir as peças da mostra “Contraponto” por autores: 33 diferentes artistas compõem a exposição e se avizinham entre paredes e salas do museu. Essa dinâmica de curadoria só foi possível, ela explica, porque as compras de Sérgio Carvalho acompanham alguns de seus diletos realizadores em diferentes fases da carreira, frequentemente tendo o cuidado de envolver séries inteiras, mantendo assim a integridade e a unidade da obra original.

De modo que se torna possível, a partir de uma coleção particular, esboçar um olhar mais amplo sobre a trajetória de determinados artistas. E é justamente essa a intenção de “Contraponto”. Plenamente realizada, por exemplo, tanto com as pinturas da brasiliense Camila Soato quanto com as diferentes técnicas empregadas por Hildebrando de Castro ao longo de um par de décadas.

Sem a tola ambição de esgotar tão ampla e variada exposição numa única visita, apontamos cá na coluna “Plástica” alguns pontos – e contrapontos – de inflexão. Assim…

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Rochelle Costi é uma artista gaúcha que vem tentando ampliar os limites da fotografia, tateando as fronteiras da linguagem. Aqui no Museu Nacional, ela toma conta de uma larga parede para esticar o painel em metacrilato “50 Horas. Auto-retrato Roubado”.

Sua criação remonta a uma experiência pessoal de Rochelle. No início dos anos 1990, quando vivia em Londres, ela atuou como modelo vivo em aulinhas de pintura. Mais do que servir para faturar umas libras, essas cinquenta horas de trabalho fizeram com que ela tivesse tempo e oportunidade de sobra para pensar e repensar não apenas a representação figurativa naquele terreno conflagrado entre pintura e fotografia, mas também a sua própria atitude como retratista diante da autoimagem.

Um par de questões recorrentes na arte contemporânea que ganharam, com Rochelle, a dimensão de uma obra ao mesmo tempo monumental – trata-se de um painel, oras – e íntima – seu corpo nu ganha diversas representações até lentamente sumir em linhas e volumes.

(Vale lembrar que Rochelle Costi foi uma das vencedoras do Prêmio Marcantônio Vilaça de 2017 e, por isso, está representada na mostra atualmente em cartaz no espaço cultural do TCU, tema do episódio da semana passada da coluna “Plástica”.)

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Nelson Leirner é – apenas – um dos protagonistas da arte brasileira do último meio século. Foi ele que, num dos momentos mais marcantes do anedotário nacional, submeteu um leitão empalhado à apreciação do juri do Salão de Arte Moderna de Brasília, em 1966.

Por isso é igualmente curioso e melancólico notar que em 2017, ainda há pouco, na semana passada, ele continua a incomodar o senso comum. Um grupo de fiéis se reuniu à frente do Museu Nacional para protestar – e rezar – contra a participação de Leirner. Em algumas das obras aqui presentes, o artista usa adesivos com as imagens de Jesus Cristo e da Virgem Maria como ícones pop, tanto quanto Bob Esponja e as Meninas Superpoderosas, tanto quanto o Boi-Bumbá e Iemanjá.

Tivessem se preocupado em subir a rampa do Museu Nacional para passar os olhos sobre a parede dedicada ao paulistano Nelson Leirner, 85 anos de idade, talvez tivessem entendido que a poética do artista é justamente a de trabalhar com formas e cores, imagens e contextos. Associando e desassociando tantos e tantos símbolos dentro de um “figurativismo abstrato”. Jogo visual que se torna quase tátil por absolutamente lúdico – e livre.

(Porém, tal protesto realmente faz todo sentido nesta semana em que Gaudêncio Fidelis, curador da já histórica exposição “Queermuseu”, foi obrigado a visitar o Senado Federal para explicar a gravidade simbólica e prática do gesto arbitrário de censura sobre uma mostra de arte.)

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Hildebrando de Castro, veja só que interessante e oportuno, faz uma obra lúdica de apelo visual e tátil que, aliás, em muito se aproxima de Nelson Leirner. Mas aqui ele parte da arquitetura para tratar de luz.

Pernambucano de nascimento, radicado em São Paulo, com vigoroso interesse em Brasília, Hildebrando é um desses artistas de quem Sérgio Carvalho reúne trabalhos de diferentes fases. Assim, Tereza de Arruda teve como dedicar uma salinha do Museu Nacional apenas para ele – com trabalhos em pintura, desenho e fotografia.

O interesse por fachadas de prédios com janelas, numa busca por geometrias e rimas visuais, dominou sua pintura a partir do início da década passada. E a arquitetura brasiliense se revelou especialmente rica para Hildebrando, que representa cobogós e brises em pinturas feitas com tinta acrílica sobre tela ou sobre madeira, uma tinta que ele deixa quase sem massa, numa brincadeira constante de enganar o olho entre sombras e volumes.

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Se a coleção de Sérgio Carvalho é assim rica em artistas de todo o país, ela se torna especialmente notável em artistas brasilienses. Muitos deles estão representados em “Contraponto”, de Élder Rocha a Antônio Obá, de Milton Marques a Waleska Reuter.

É particularmente feliz o reencontro entre Camila Soato e Fabio Baroli. Dois artistas da mesma geração, ambos dedicados à pintura, que foram colegas no Instituto de Artes da Universidade de Brasília e chegaram a dividir o mesmo ateliê e a mesma banda de rock (Gilbertos Come Bacon).

As intenções de Camila Soato estão particularmente expressivas na tela “Mané, Manet, Monet”. Um gigante de quatro metros e meio de altura por dois e meio de largura que se impõe na sala. Dentro de uma pesquisa estética e política que ela desenvolve sobre a história da arte, Camila vai a dois pintores emblemáticos para a virada da arte moderna no final do século XIX, os franceses Édouard Manet e Claude Monet.

E Camila redimensiona aquelas conquistas daquele tempo agora sob a luz de uma pintora brasileira contemporânea que busca reafirmar através do próprio trabalho sua condição como mulher e como artista.

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Camila Soato agora estuda e trabalha em São Paulo. Enquanto Fábio Baroli voltou para Uberlândia, interior de Minas Gerais, sua terra natal, numa espécie de viagem de retorno às raízes – uma necessidade que ele sentiu de alimentar sua própria pintura.

A importância que esse regresso teve para Fábio Baroli já tinha ficado patente, há dois anos, numa mostra individual de sua produção recente, apresentada no Centro Cultural Banco do Brasil. As obras adquiridas por Sérgio Carvalho e que integram “Contraponto” remontam mais ou menos àquela época.

Caso do tríptico “Batata Quando Seca a Rama é que Fica Enxuta” (160cm x 240cm), peça da série “Muito pelo ao Contrário”. Com seus quadros nomeados a partir de ditos populares, essa série de pinturas desenvolve o que o artista vem chamando de “antropomatutologia”. O elogio aos matutos e sua sabedoria, adquirida de geração para geração, sua forma de ver o mundo e de nele se portar.

Fabio Baroli parte de registros fotográficos completamente espontâneos, muitas vezes feitos na intimidade que apenas os familiares podem ter entre si, ou apenas os vizinhos e amigos muito, muito próximos. Parte desses fragmentos do cotidiano interiorano para criar uma obra universal em que sua excelência técnica jamais se sobrepõe ao puro e imediato caráter empático.

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João Angelini é da mesma geração de Camila Soato e Fábio Baroli. Ele cantava no Gilbertos Come Bacon, banda na qual Camila tocava baixo e Baroli, percussão.

Angelini, porém, vem trabalhando com outras linguagens e circunstâncias. Integrante do Grupo EmpreZa, ele também desenvolve um trabalho solo de relevo.

“Contraponto” deixa o visitante entrever um pouquinho do quão variada é a obra de Angelini. Entre as peças ali presentes, um par de vídeos de animação, feitos com a técnica de stop motion, em que o artista se vale de sua experiência como performer. São exercícios que questionam as convenções de nosso adorável mundinho capitalista. Assim como as cédulas de dinheiro que Angelini recorta com raio laser criando quebra-cabeças.

Pode até não estar a ponto de rasgar dinheiro, para além de seu labor artístico, mas João Angelini muitas vezes corteja seu lado mais animal – biologicamente falando. Deitada ao rés do chão, sobre uma baixinha plataforma de madeira, a instalação “Sangue de Boi” traz uma ossada de animal reestruturada numa arquitetura de madeira e arame. No seu interior, quietinho, pulsa um coração – mas apenas para quem se dispuser a se abaixar, pulsa o coração, apenas para quem se ajoelhar diante dele.

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Entretido como a montagem de suas obras, João Angelini não pôde participar da preparação do Grupo EmpreZa para apresentar uma performance na noite de abertura de “Contraponto”.

A compra de uma performance é questão controversa por origem. Uma vez que a própria natureza dessa linguagem artística é a de ser um ato efêmero que ocorre em determinado tempo e em determinado lugar. E uma vez que a própria criação da performance, nos anos 1960, pode ser entendida como uma resposta desaforada ao circuito das artes, ao mercado das artes.

“Maleducação”, um dos exercícios mais nojentinhos do sempre arisco e arriscado Grupo EmpreZa, foi adquirida por Sérgio Carvalho em 2016. De modo que o colecionador tem direito de dispor desse trabalho sempre que, em sintonia com o coletivo, ele quiser.

Para a noite de abertura, seis integrantes do EmpreZa se sentaram diante de uma mesa de jantar, mui fina, disposta no centro da sala de exibição do mezanino. Sempre vestidos de acordo com o dress code corporativo, os performers ficaram ali de boa, tomando vinho, conversando, distribuindo amabilidades para os convidados e compartilhando da refeição.

O único problema é que eles estavam de mãos atadas, uma mão enfaixada na mão do colega sentado ao lado. Detalhe que já deixou o grupo com os movimentos um tanto limitados à mesa. E uma espécie de garra metálica, talvez um aparelho ortodôntico para consultórios particularmente sádicos, mantinha os artistas com os lábios abertos e as mandíbulas um tanto comprometidas.

Não, aquele não foi um jantar especialmente agradável.

Bernardo Scartezini/Metrópoles
Detalhe de pintura de Camila Soato

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