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Uma tarde com Girafa: cinema, revistas e arte, tudo ao mesmo tempo

Dono de uma galeria erguida nos fundos de sua casa, pintor e fotógrafo estreia como diretor de cinema em Enigma, longa em finalização

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Bernardo Scartezini/Metrópoles
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1 de 1 foto-de-abre2 - Foto: Bernardo Scartezini/Metrópoles

Luis Jungmann Girafa fez dos fundos de casa o seu ateliê de pintura. Depois, criou ali a Galeria Matéria Plástica. Que, então, transformou-se em editora. Com ele é assim: tudo o que toca se desdobra em outra coisa, porque, na verdade, tudo faz parte de um mesmo pensamento, de uma mesma intenção.

Do alto de seus sorridentes dois metros de altura, Girafa recebe pessoalmente a coluna Plástica no portão de sua casa, no Altiplano Leste. Viemos visitá-lo numa tarde de Quarta-feira de Cinzas porque Nelson Maravalhas, seu amigo há décadas, está atualmente com uma mostra de desenhos na Alfinete Galeria e parece bom falar sobre isso com ele agora, já que a editora de Girafa publicou, há alguns anos, desenhos de Maravalhas num caderninho.

Como periga acontecer em algumas visitas, a conversa toma outros rumos e, antes de falar das publicações da Galeria Matéria Plástica, Girafa manda um briefing sobre sua mais recente aventura. Já está finalizada a edição bruta de Enigma, seu primeiro longa-metragem como diretor.

Tudo começou com uma fotonovela que, depois, se transformou numa exploração dos recantos decadentes da W3 Sul que, então, virou um ensaio fotográfico que, logo, abriu caminho para uma performance que, dali, se tornou uma série de cenas sem roteiro (mas devidamente registradas em vídeo com som direto) e tudo isso, a esta altura, já está decupado no computador de Girafa num corte bruto de 80 minutos, aguardando minúcias de edição e burilações de som.

Enigma surgiu sem projeto, muito menos edital. Sequer teve roteiro. Brotou espontaneamente das seguidas visitas de Girafa à W3, e ele se fez cercar por adorável trupe, reunindo diferentes gerações e filiações, de Hugo Rodas e Bidô Galvão a Renato Matos e Gaivota Naves. A artista visual Valéria Pena-Costa fazendo uma espécie de musa shakespereana a recortar a narrativa.

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Como não havia roteiro e seus atores e colaboradores não paravam de lhe perguntar sobre o enredo, Girafa teve que se sair com uma explicação, a mais breve possível. Então, escreva-se: eis um dia na vida de pessoas comuns que frequentam a W3 – e, ao fim deste dia, algumas delas irão morrer.

Muito mais do que isso Girafa não diz. Adianta apenas que reservou uma pauta no Museu Nacional Honestino Guimarães, no segundo semestre de 2019, quando pretende lançar Enigma como filme, claro, mas também como mostra fotográfica e como livro com essas imagens.

Para datas mais próximas, bem mais próximas, Girafa vem trabalhando em duas frentes. Como autor, ele será o personagem da próxima exposição na loja Hill House, no CasaPark. Sob curadoria dos colegas artistas Valéria Pena-Costa e Mário Jardim, estão sendo reunidas pinturas recentes de Girafa, muitas neste momento ocupando as paredes de seu ateliê, algumas ainda com a tinta secando. Também serão apresentadas fotografias feitas na Praça do Rossio, em Lisboa, e que renderam o livro Anônimos do Rossio (Editora Siglaviva, 2013) e a exposição homônima no Museu dos Correios (2014).

E, como editor, Girafa está finalizando em seu notebook a diagramação de Paisagem Concretista. Trata-se de um livro de fotografias de José Roberto Bassul. Arquiteto e fotógrafo, Bassul tem exposição na Referência Galeria de Arte marcada para a segunda quinzena de maio. A intenção é que o livro saia em abril, com a mostra ainda em cartaz, levando o selo da Matéria Plástica. Formato de 26cm x 21cm, com 96 páginas e textos do próprio Bassul e da curadora Graça Ramos.

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Luis Jungmann Girafa diz que é a mania de fotógrafo, um apreço tátil pelo objeto fotografia, que o faz hoje em dia ainda perseguir o antigo sonho de publicar em papel.

“Uma fotografia no computador não é uma fotografia, é apenas uma imagem. Como eu sou um cara antigo, no sentido lato do termo, sinto necessidade de ter um produto físico. Esta é a minha utopia. E sinto também que, se você não documenta, se não tem uma publicação da atividade cultural do lugar onde vive, é como se nada daquilo existisse.”

É uma busca artística, portanto, na mesma medida que é uma busca existencial. Para deixar claro que Luis Jungmann Girafa existe, temos em mãos quatro cadernos editados entre 2014 e 2015. Trazem trabalhos inéditos de Paulo Iolovitch (pintura), Carlos Ebert (fotografia), Nelson Maravalhas (desenho) e do próprio Girafa (fotografia). Cada um custa R$ 20,00 e pode ser encomendado pelo e-mail materiaplastica@gmail.com.

“Eu não sou exatamente um exemplo de empresário, mas cada um desses cadernos não me deu prejuízo, mesmo que também não tenha me dado lucro, não me deu prejuízo e permitiu que eu fizesse o próximo.”

Para o primeiro lançamento do selo, Girafa pensou em Paulo Iolovitch, artista que inventou um mercado para si mesmo onde espaço algum havia, vendendo suas obras na noite brasiliense, em bares como o Beirute.

Carlos Ebert, por sua vez, tornou-se referência no cinema brasileiro em dois tempos distintos: quando foi câmera para Rogério Sganzerla em O Bandido da Luz Vermelha (1968) e no seu pioneirismo na transição para o vídeo digital (início da década de 2000). Ebert, como diretor de fotografia, e Girafa, como diretor de arte, se conheceram nos bastidores de Rua Seis, Sem Número (2003), de João Batista de Andrade.

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Nelson Maravalhas e Girafa se conheceram no final da década de 1960. De lá para cá, embora nunca tenham sido de se frequentar, jamais perderam o contato. Chegaram a trabalhar em Louco por Cinema (1994), o cultuado filme de André Luiz de Oliveira.

Em determinada sequência do filme, os pacientes amotinados no hospício decidem ensaiar uma peça – e Girafa então, como responsável pela cenografia do filme, precisou de um pano de fundo com desenhos que os internos fariam. Logo pensou em Maravalhas, camarada versado na chamada art brut, a arte bruta, a arte dos loucos, como o artista ideal para providenciar o cenário.

Uma outra parceria entre os dois artistas se deu sob o selo da Matéria Plástica e tem o formato 21 x 15 cm próprio das revistinhas editadas por Girafa. O título Sphinx, Maravalhas tomou emprestado de uma revista que realmente existiu, publicada entre 1886 e 1896 em Leipzig, na Alemanha. Escrita em alemão e com circulação restrita a iniciados no ocultismo, versava sobre temas mui caros ao chamado conhecimento hermético, tais como paranormalidade, sonambulismo, recepção mediúnica, fotografia transcendental, cabala, quiromancia e satanismo, entre outros.

Maravalhas teve a oportunidade de folhear alguns exemplares originais da Sphinx. Deu de cara com tamanho tesouro em suas pesquisas acadêmicas na Universidade de Heidelberg, em 2013, quando estudava sobre o artista outsider Heinrich Hermann Mebes (1842-1918) para o seu pós-doutorado.

Ainda impactado por tais leituras, Maravalhas enxergou no convite de Girafa para publicar qualquer material inédito pela Matéria Plástica, em 2015, a oportunidade perfeita para escoar a recente obsessão. Então copiou exatinho o logotipo e as fontes tipográficas da revista Sphinx original e criou uma contrafação – na qual, em vez de textos herméticos, eram os seus desenhos que se apresentavam ao leitor numa narrativa visual…

(Desenhos, aliás, que são da mesma época daqueles que agora estão em cartaz na Alfinete Galeria. Todos produzidos entre 1988 e 1996, e mantidos guardados por todo esse tempo, conforme a coluna Plástica contou há um par de semanas.)

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A ideia de uma narrativa visual, que prescinda de palavras, foi fundamental para Maravalhas poder partir dos segredos herméticos da Biblioteca de Heidelberg e explorar os desenhos feitos por ele próprio, em uma outra época, em uma época anterior, agora sob essa nova ótica, e reordená-los para a revistinha.

Vasculhando um armário de madeira, ocupando uma parede da Galeria Matéria Plástica por ora desativada, Girafa encontra ali dentro uma série de projetos que estão aguardando publicação. Aquela seria a fila do prelo – e trata-se de um lugar bem concreto, no caso. Dentre vários trabalhos, todos em diferentes graus de realização e finalização, o autor/editor resgata uma obra específica que parece deixá-lo bastante satisfeito.

Trata-se de uma outra narrativa visual, para além das palavras, assim como Conversa Paralela, o ensaio fotográfico que Girafa publicou pelo próprio selo em 2015. A Necessidade Secreta é apresentado como um livrinho pronto e acabado, mas ainda em forma de boneca, um modelo para publicação. Mas bem pode ser entendido como um exemplo arrematado da poética de seu autor.

Girafa, como fotógrafo, traz um olhar que não é apenas um olhar contemplativo, passivo. Traz um olhar de procura, um olhar que recorta e constrói. “Digamos que, em minhas fotografias, eu trabalho sobre uma combinação de elementos. Como se você inventasse uma paisagem possível a partir daquilo ali que está dado numa determinada realidade. A partir de determinado objeto, você busca situações de luz que as superfícies oferecem, o que interfere na materialidade das coisas.”

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A Necessidade Secreta só não foi publicado porque cedeu sua vez a um projeto mais ambicioso. No Final Não Acontece Nada pode ser entendido, até este momento, como o maior investimento da Matéria Plástica, financiada por crowdfunding, e sua mais cara realização (R$ 50,00, exemplar)

Eis uma fotonovela, como aquelas de antigamente, ou um “cinema de papel”, para usar a expressão adotada pelo próprio Girafa. Estrelada por João Paulo Oliveira e Eliana Carneiro, a produção teve cenas no Cine Brasília e no Bar Brasília, entre outros pontos notáveis da arquitetura candanga, com seus pilotis e cobogós, para narrar a freudiana saga de um desajustado mocinho que tem as manhas de marcar programa romântico com a mocinha para ver um filme do Luis Buñuel.

Fernando Villar, dramaturgo, trabalhou no roteiro com Girafa. Foi dele a proposta um tanto radical de, uma vez instruídos os atores e terminada a parte fotográfica da empreitada, eles abrissem mão dos textos de apoio para editar revista num formato puramente visual. Restaram, assim, apenas os títulos dos capítulos. Nada de narração, nada de ambientação, contexto, background, comentários.

Como resultado, percebe-se uma linguagem que se baseia fundamentalmente na fotografia, claro, mas que se alimenta igualmente da dinâmica dos quadrinhos e da composição teatral, igualmente das referências do cinema e da história da arte.

“Muita gente veio falar comigo que não entendeu”, se lamenta Girafa, já no portão da rua, em tom de despedida, após uma tarde de conversa sobre cinema, fotografia, pintura, desenho e edição. “Muita gente sentiu falta de uma narração. Acho que, há alguns anos, as pessoas teriam entendido melhor, teriam sentido menos falta do que não está lá.”

Bernardo Scartezini/Metrópoles
Entrada da Galeria Matéria Plástica, no Altiplano Leste

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