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O abacaxi de Cícero Dias: uma obra que vale toda a exposição

Em cartaz no CCBB até esta segunda (3/4), a exposição mostra a aproximação do pintor brasileiro com Pablo Picasso

atualizado

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Bernardo Scartezini/Metrópoles
Cícero Dias
1 de 1 Cícero Dias - Foto: Bernardo Scartezini/Metrópoles

Em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) de Brasília até segunda-feira (3/4), a mostra “Cícero Dias — Um Percurso Poético” faz jus ao seu nome. De fato, a curadora Denise Mattar convida o nobre visitante e o conduz passo a passo, peça a peça, por uma carreira heterogênea que se desenrolou por mais de meio século.

Cada etapa da vida e obra do artista pernambucano — e não foram poucas — pode ser dichavada intelectualmente, em textos curatoriais, e, visualmente, em carne viva, ou seja, telas e cores.

Nesse sentido, o trajeto começa pelo térreo da galeria principal, cujo formato redondo se revela uma pequena ciranda de aquarelas e pinturas, produzidas quando Cícero Dias (1907-2003) ainda morava no Brasil. Partindo do final dos anos 1920, percorrendo toda a década de 1930. É o momento em que o artista se dedica a vasculhar as memórias de infância, do menino de engenho, e assim se encaixando na primeira geração modernista brasileira, que o levaria a ganhar o mundo.

Descendo as escadas da galeria e chegando ao piso inferior da exibição, o incauto visitante pode ser surpreendido por uma explosão tropical. “Galo ou Abacaxi?”

Divulgação

 

Trabalhada por um par de anos, até que seu autor se desse por satisfeito, entre 1942 e 1944, essa pintura em óleo sobre tela implode o figurativismo modernista tão brasileiro da primeira fase de Cícero Dias — presente em toda a primeira metade dessa retrospectiva, ao anunciar a manhã cubista que, para Cícero, ali se iniciava

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Na época, então, ele já trocara o Recife pelo Rio de Janeiro, o Rio de Janeiro por Paris e Paris por Lisboa. Esta última mudança, nada corriqueira. Foram postos para correr, ele e seus pares, pelas tropas nazistas a invadirem a França. Cícero encontrou refúgio em Portugal, que vinha passando ao largo naqueles tempos de guerra. Atormentado por seu contexto histórico e desconcertado pelas ousadias que as vanguardas europeias vinham assumindo havia algumas décadas, Cícero Dias fez de sua pintura uma tábula rasa.

Ou quase. Os temas e as cores ainda estavam ali. Sua paleta e sua temática não mudariam assim tão imediato. Mas o figurativismo onírico, fantástico, de certo acento chagalliano parecia lhe soar como que esgotado, pronto para ser torpedeado. Sob o nítido bafejo de Pablo Picasso, um de seus amigos mais próximos na temporada parisiense, Cícero pegava dois elementos prosaicos, antigos, primordiais para um menino de engenho. Um galo, que qualquer chácara ou sítio tem ainda hoje, e um abacaxi, que qualquer natureza morta latino-americana pode assumir com a naturalidade que um pintor europeu entenderia uma pera ou uma maçã.

Eis o pulo do gato cubista. O pulo do gato de Picasso. Cícero Dias transfigurou o abacaxi em galo, o galo em abacaxi, a coroa dum é a crista do outro, a pena de um é a ramagem do outro, o peito do galo (ou seria a casca do abacaxi?), ganhando volume, ganhando massa pictórica, blocos de tinta laranja e marrom, rasgando para além do papel, querendo transbordar para a terceira dimensão, tal e qual uma colagem cubista.

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Um gesto natural, talvez, se visto com os olhos mui descolados do apreciador da arte contemporânea. Um ato transgressor em sua época, que custaria a Cícero Dias muitas amizades cá em sua terra. Contam as anedotas e os documentos da arte nacional que Manuel Bandeira não gostou nem um pouco do pintor europeizado que tomara o corpo de seu antigo amigo. Para sua exposição seguinte em terras brasileiras, na Faculdade de Direito do Recife, em 1948, Cícero trouxe ainda outras telas de semelhante estirpe. Como “Mamoeiro ou Dançarino?”, também presente aqui agora em Brasília.

Em 1948, essas liberdades, mesmo tomadas de espírito lúdico e de apreço para com a gente e a natureza pernambucanas, não foram compreendidas. Levantaram tal burburinho que o futuro cineasta Vladimir Carvalho, atraído pelo auê, foi visitar a exposição e dela sairia com os olhos modificados. Tanto que, décadas mais tarde, ele fez um documentário (o recente “Cícero Dias, o Compadre de Picasso”) para dar conta do tanto que viu.

Em 2017, no ventre dessa vasta retrospectiva, articulando o primeiro momento de Cícero Dias com o abstracionismo que ganharia mais e mais apelo geométrico ao longo dos anos 1960 e 1970, e que aqui ocupa boa parte do piso inferior do CCBB, esse insolente galináceo faz todo sentido. Manuel Bandeira, homem de palavras simples e exatas, daquela vez estava errado. O futuro daria razão ao abacaxi de Cícero Dias.

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