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De caminhões de terra, César Becker cria montanhas

O trabalho do artista saiu de casa e tomou o mundo real

atualizado

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César Becker/Acervo pessoal
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1 de 1 SONY DSC - Foto: César Becker/Acervo pessoal

Segundo o escultor César Becker, a arte serve para a compreensão da imensidão do mundo. Uma maneira de tomar ideia da dimensão de uma montanha a partir das pequenas coisas e da ordem do mínimo.

Trajeto poético e intelectual que vem ganhando amplidão, aumentando de escala até que, de umas semanas para cá, passou a envolver doze caminhões de terra e uma retroescavadeira. Foi quando a arte de César saiu de dentro de casa e tomou o mundo real.

Um par de montanhas de terra vermelha, erguidas por ele em pleno Campus Universitário Darcy Ribeiro, reivindicam o lugar da arte contemporânea no ventre da Universidade de Brasília (UnB). (E um descompasso entre artista e instituição, como veremos adiante, emprestou ainda mais interesse à obra.)

Planejada para fazer parte da série “Coordenadas Orbitadas”, da qual tratamos aqui na coluna “Plástica”, na semana passada, a mais recente intervenção de César Becker retoma uma parceira conceitual e espiritual com Karina Dias.

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Karina Dias e César Becker se cruzaram nos corredores do Instituto de Artes da UnB há um par de anos, quando ele ingressou no curso de pós-graduação e passou a ter aulas de Poéticas Contemporâneas com a professora. O primeiro fruto desse encontro foi a escultura “Transportais um Punhado de Terra Todos os Dias e Fareis uma Montanha” (2015).

Título que foi tomado emprestado de um pensamento de Confúcio para ser executado quase literalmente. Nas margens do antigo Balão do Aeroporto, hoje desfigurado por uma rede viária, César encontrou uma montanha daquela terra vermelha típica do Planalto Central, que havia sido revolvida pelas obras.

Dentro de um saco plástico, guardou um punhado do material e levou para casa, não muito distante dali, no Park Way, onde se pôs a criar uma montanha, duas montanhas. Uma caixa de metal (30cm x 30cm) foi a estrutura que César armou, pensando na teoria dos fractais, de acordo com a qual as estruturas da matéria se repetem desde a mínima (a molécula) até a máxima escala (o universo).

Sobre a parte superior da caixa de metal, ele foi despejando a terra vermelha, que escorria por um orifício até reconfigurar, dentro da caixa, exatinho o mesmo formato da montanha de cima – e que, por sua vez, reproduzia o formato da montanha original, aquela lá fora, aquela que nós espectadores não conhecemos, mas que podemos intuir.

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Percebe-se que César Becker anda fascinado com a terra vermelha. Um material que contém muita quantidade de ferro, por isso sua coloração e de outras características bem peculiares, que possibilitam ao escultor uma série de trabalhos. Interessam a César ações como empilhar, amontoar, sedimentar e compactar essa terra. Quando umedecida, ela atinge uma tal coesão de partículas que permitem ao artista construir formas que se mantenham temporariamente.

“Minhas pesquisas a partir desse material abriram ideias para trabalhar em processos telúricos e geológicos, como as formações de montanhas e de rochas”, explica César. “Venho pensando então em como evidenciar isso a partir da escala humana.”

Daí aquelas duas mini-montanhas indoor do trabalho de 2015 levarem às duas montanhas da recente intervenção “Terra à Vista” na UnB.

“Moramos numa cidade em platô. Então me interessa ver como César faz esta nossa terra vermelha, que a princípio é plana, se elevar e virar montanha”, comenta Karina Dias. “Ele faz isso invertendo a escala do íntimo e trazendo a montanha para perto do corpo. César representa a utopia máxima: é um construtor de montanhas.”

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Bem, como construir uma montanha? Duas? Primeiro despeje no terreno seis caminhões de terra e então utilize uma retroescavadeira até atingir uma estrutura de quatro metros cúbicos. Repita a operação, ali mais adiante, para esculpir a segunda montanha nos conformes da anterior.

E para que “Terra à Vista” fique completa, no sentido desejado por César Becker, não se esqueça de, dentro de cada uma dessas duas montanhas, encaixar em linha três manilhas de concreto. Elas funcionarão para ti, prezado espectador, como uma luneta para brincar de perspectiva. De modo que, do lado de cá, tu possas enxergar direitinho o que está lá adiante.

Um jogo de duplos. A materializar, bem diante dos olhos, aquilo que Karina Dias chama de “escala do íntimo”. De repente, o que estava longe agora está perto de nós, e isto que está aqui defronte também podemos ver bem distante.

César Becker, dentro do catálogo de variedades chamado arte contemporânea, enxerga interesses convergentes entre si e a tradição da land art. Esse movimento que ele fez, saindo de um ambiente fechado e tomando o mundo real, bem verdade, já vem sendo percorrido desde a década de 1960.

“Sempre que trabalhei dentro de uma galeria ou dentro de um museu, eu senti um confronto direto, não apenas com os espaços físicos, também com as outras instâncias, políticas e econômicas, que estão muito latentes nesses ambientes”, admite César.

Antes que sua terra vermelha deixasse encardida a parede branca de uma galeria, ele passou a pesquisar a cidade ao redor. Percorreu também descampados perto de rodovias, rodou para além de Brasília e cruzou Goiás. Descobriu que todos os espaços já têm seus donos. Grandes plantações, pastos para o gado ou simplesmente terras vazias para a especulação.

Seguidamente se deparando com a relutância dos proprietários em disponibilizar suas terras para uma intervenção artística, pareceu natural a César erguer suas montanhas dentro dos limites da UnB. Num quadrante de cerrado, à direita do extremo sul do Minhocão, ele encontrou um terreno ainda virgem – ou quase – salvo pelas famosas carcaças de kombis deixadas pelos Corpos Informáticos de Bia Medeiros e por algumas esculturas de alunos de Miguel Simão.

Mas claro que o movimento de caminhões de terra e de uma retroescavadeira, em plenos dias de aula, acabariam chamando a atenção da autoridades competentes. Após alguns dias de tensão & negociação, César protocolou seu trabalho de pesquisa às instâncias cabíveis e agora “Terra à Vista” faz parte do relevo da UnB. Pelo menos nos próximos meses.

Os meses de seca que se estendem até setembro, talvez entrando outubro, devem dar uma esturricada nas duas montanhas gêmeas. Depois vem a chuva e seu resultado ainda está para ser avaliado. Dependerá da intensidade das águas, dependerá da drenagem do terreno em leve decline. A ver o que se passará. A natureza, já sabe César Becker, sempre há de vencer.

Bernardo Scartezini/Metrópoles
Karina Dias e César Becker: à espera das chuvas

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