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“Estou com medo”, diz repórter xingada de “macaca” por servidor no RJ

Após ser agredida e xingada durante reportagem, Julie Alves está abalada e conta que já passou por outras situações de racismo

atualizado

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Reprodução/ Instagram
julie alves
1 de 1 julie alves - Foto: Reprodução/ Instagram

Era para ser mais um dia normal de trabalho para uma equipe de reportagem da emissora carioca CNT. Mas tudo resultou em um episódio de agressão à imprensa, racismo e gordofobia. O caso aconteceu no final de setembro com a repórter Julie Alves e o cinegrafista Vângelis Floyd enquanto faziam uma reportagem para o programa Fala Baixada, próximo a um posto de saúde em Japeri, na Baixada Fluminense. Segundo a jornalista, a pauta era sobre os problemas em um lixão do local.

Durante a gravação, Julie quis falar com o responsável pelo posto sobre o assunto. Foi quando um homem apareceu e quis impedir as filmagens. Mais tarde, ela descobriu que era o diretor do posto de saúde, Clodoaldo Silva de Souza, conhecido como Dudu. O funcionário começou a xingar e acuar os profissionais, enquanto Julie pedia para continuar gravando. O homem então disse “Pode gravar o que, sua macaca? Vai gravar, seu gordão?”, se referindo à repórter e ao cinegrafista. “Ele estava tão agressivo que pensei que fosse dar um soco na minha cara. Ele veio dar um tapa e eu coloquei o microfone [na frente], que caiu no chão”, explicou Julie.

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Por causa da confusão, repórter e cinegrafista passaram mal, com pressão alta. Também fizeram um boletim de ocorrência contra o funcionário da prefeitura, que foi exonerado e irá responder legalmente pelos atos. O caso ganhou repercussão na imprensa e Julie contou que ainda está abalada. “Por mais que eu queira acreditar na Justiça, penso se ele será punido por isso. Fica uma tristeza muito grande, uma mágoa. É bem difícil passar por uma situação dessa e ter o psicológico restaurado de uma semana para outra. Porque ele veio para me agredir, né?”, relembrou.

Família e carreira

Enquanto se recupera, o medo ainda acompanha a jornalista, que tem dois filhos e também teme pelos familiares. “Estou com medo. Às vezes,  ainda sonho com a cena. Ontem, fui gravar e quando vi a placa de Japeri, já me deu um pânico”, relatou. Preocupado, o marido da repórter cogitou que ela parasse de trabalhar. “Eu amo o que faço e não posso deixar de trabalhar, mas a preocupação continua”, comentou. Julie ainda destacou que o apoio de vários colegas da imprensa tem ajudado. “Tem sido um carinho tão gostoso! Não imaginava que eu fosse tão querida. Isso tem acontecido com outras pessoas, então essa união e esse afeto me trouxeram um afago”, desabafou.

A jornalista Julie Alves está na profissão há 10 anos. Criada sozinha pela mãe junto com os irmãos no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, a vida e o início da carreira não foram fáceis. “Sempre sonhei em ser jornalista. Só que eu não tinha condições. Um amigo me ofereceu uma bolsa de estudo, eu já tinha um filho pequeno… Foi aí que fiz jornalismo. Sempre quis trabalhar na televisão! Ouvi de muitas pessoas que ia ser difícil chegar na TV porque não davam espaço para negros, ou por eu ser de comunidade”, relatou. Além da CNT, Julie trabalha com Sônia Abrão no programa A Tarde é Sua, da Rede TV e disse que a apresentadora foi uma das únicas que lhe deu espaço. “A única pessoa que me abriu portas e me colocou em rede nacional”, afirmou.

Racismo e representatividade

A repórter afirmou que já sofreu racismo e discriminação social, mas jamais havia sido agredida como em Japeri. “No meu trabalho, não fui xingada dessa maneira. Mas já sofri perdendo um trabalho para uma branca que não tinha a qualificação e a desenvoltura que tenho. E já passei por muita situação com gente preta também”, contou. A profissional acredita que o que acontece com ela é o reflexo de uma vivência diária para a comunidade negra. “Quando um preto ou uma preta abrem a boca para falar o que tem passado, as pessoas dizem que a gente está de ‘mimimi’, querendo se vitimizar… A verdade é que existe sim o racismo. De você estar nos lugares e só ter repórteres brancas e elas te olharem tipo ‘quem é ela?’. Eu já cheguei em lugares e as pessoas perguntaram quando a repórter ia chegar e a repórter era eu”, revelou a jornalista.

Para Julie, pretos e pretas ainda têm poucas oportunidades de crescer na televisão. “A televisão prefere um rostinho bonito do que qualidade. Muitas pessoas pensam que estão fazendo um favor para o negro por dar um espaço e, na real, o negro pode ocupar qualquer espaço porque é tão qualificado quanto”, disse. Ela também observa que representatividade ainda é um desafio na mídia. “Hoje quem é minha referência é a Maju, a Taís Araújo… Você conta nos dedos por quem você se sente representado na televisão. A sensação que tenho é que colocam um negro no jornalismo para as pessoas não ficarem de mimimi. O que falta é a gente ver mais mulheres pretas, guerreiras, que venceram todos os obstáculos e conseguiram uma oportunidade de estar ali. Eu quero me sentir representada”, finalizou.

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