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Tudo acontece na calçada mais importante de Brasília

Entre o Conic e o Conjunto, passa um Brasil divertido, mal-educado, criativo, cercado de monumentos que parecem feitos para outro país

atualizado

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Myke Sena/Especial para o Metrópoles
Rodoviária do Plano Piloto
1 de 1 Rodoviária do Plano Piloto - Foto: Myke Sena/Especial para o Metrópoles

Tem menos de um quilômetro, 760 metros, 1.154 passos, a mais importante calçada de Brasília, que vai da extremidade norte do Conjunto Nacional ao extremo sul do Conic. Mais importante, mais movimentada e mais democrática. Quando os fiscais da Agefis não imperam sobre o desemprego, ela fica ainda mais importante, mais movimentada e mais democrática.

Nos últimos dias, ela tem estado assim.

Na sexta-feira passada, uma ambulante me chamou:

— Vem cá, tenho uma tiara pra você, pra tirar esse cabelo partido no meio, essa cara de Madalena arrependida.

Não sabia se partia pra cima ou se ria. Segui adiante – vou escrever uma crônica.

Lá na frente, um homem deu um passo na minha direção, tocou levemente os dedos no meu antebraço e disse:

— Tá passeando hoje, mulher? E me ofereceu um panfleto.

O outro vendia cerveja e pinga em dose.

— Olha a pinga, olha a cerveja, madame, hoje é sexta, olha a pinga, olha a cerveja.

Assim somos, os brasileiros. E o Brasil percorre os 780 metros da calçada ou estica o pano e sobre ele coloca mochilas, óculos, guarda-chuva, calcinha, cueca, meia, sutiã, bermuda, garrafadas milagrosas, tudo para celular, cosméticos, tênis, sandália, um Conjunto Nacional deitado na passarela sobre o cruzamento dos Eixos.

Quase chegando ao Conic, começa a abordagem do “teste demissional e admissional, compro ouro”. Antes eram alguns, agora são dezenas, que se esticam até as praças. É um pelotão que parece servir a um só senhor, que faz teste para emprego e desemprego e compra joias dos desesperados.

Perto do Conjunto Nacional, sempre há um cantor que o shopping parece tolerar. Por alguma razão, eles se consideram donos da calçada debaixo do pilotis e não poucas vezes retiram de lá os hippies e os grupos musicais.

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Talvez para se redimir da política higienista, o Conjunto reformou a praça em frente ao Teatro Nacional, projeto original de Lucio Costa e Maria Elisa Costa. Ficou à altura do arquiteto: bancos de concreto em forma de cubos, elegantes, discretos, concisos.

A calçada/passarela ligando a Asa Norte à Asa Sul é um mirante horizontal suspenso. Sobrevoa o Eixo Monumental e se abre para a escala com que Lucio Costa quis gravar a soberania da capital de um país que, 65 anos atrás, vivia um surto de esperança.

Se tivéssemos prestado um pouco mais de atenção, se não fôssemos tão passionais, se não precisássemos tão desesperadamente acreditar em alguma coisa, talvez tivéssemos percebido, àquela altura, que a escala monumental deixava um vazio invencível entre o homem e a cidade.

Nós, os que atravessamos a passarela entre o Conjunto e o Eixo, nos sentimos demasiadamente pequenos diante da cidade que habitamos. Como se Brasília tivesse sido feita para ela mesma, não para nós, seus habitantes.

É uma sensação paradoxal: é bela, grandiosa, mas está tão distante de mim quanto as estrelas, e de estrelas já são suficientes as que estão no céu.

O Teatro Nacional, o antigo Turing (esquecida obra de Niemeyer) são ruínas da cidade moderna. A Esplanada a leste, a Torre de TV a oeste – por que doem?

Chovia na sexta-feira quando deixei a calçada mais importante de Brasília. Sentado numa lata de tinta, coberto por uma capa e um guarda-chuva, um flanelinha, Devanir, abriu um sorriso tão bonito quando pedi pra fazer uma foto que voltei a acreditar – não sei em quê, mas a acreditar.

Conceição Freitas/Metrópoles

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

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