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Que o Alvorada volte a ser ocupado por alguém digno do cargo

Crônica de Raimundo (o mordomo), Juscelino (o presidente), Niemeyer (o arquiteto), e um palácio construído para honrar o Brasil

atualizado

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PAULO LANNES/METRÓPOLES
Palácio do Alvorada, em Brasília
1 de 1 Palácio do Alvorada, em Brasília - Foto: PAULO LANNES/METRÓPOLES

Faz mais de dez anos, ele não sabe quem é nem o que faz aqui. Foi sumindo num crescendo, mas de vez em quando reaparece, como se um cometa de lucidez alumiasse, por uns segundos, a mente esquecida de Raimundo Inácio, paraibano de 84 anos, que um dia foi mordomo e motorista da Presidência da República.

Quando já não se lembrava de mais ninguém, nem dos filhos, nem da mulher, ele ainda tinha nítido e vibrante a imagem de uma pessoa. A filha caçula, Paula, mostrava a foto.

– Quem é, pai?

Ele reagia, como quem acorda de uma anestesia profunda:

– É o homem.

O homem era Juscelino Kubitschek, de quem Inácio tinha sido motorista e mordomo, segundo conta a família.

– Num teve igual. Um dia ele chegou e eu não vi. Estava de costas. Entrou, não tinha copo limpo. Lavou o copo e tomou água.

Parece uma fábula que se repete por essa Brasília, há 63 anos, desde que ela começou a ser construída. Todo candango que aqui esteve naqueles anos de construção tem uma história com Juscelino. É uma onipresença tão forte quanto a cidade, talvez até mais forte, porque humana, porque ombreia com todos nós e nos dignifica.

“Eu vi Juscelino”, é a primeira coisa que se ouve quando um candango ou candanga começa a contar sobre aqueles tempos. São lendárias as histórias das visitas que ele fazia às obras nas madrugadas. Hoje se diria que ele era um populista. E era. Mas era altaneiro, decente, emprestava honra e dignidade aos brasileiros. Uma de suas frases mais repetidas é a de que o candango não construía um prédio, construía catedrais. Com essa imagem, Juscelino dava sentido e valor ao trabalho operário, dava o devido valor ao canteiro de obras.

Por certo, foi um tempo insano, de trabalho excessivo, de acidentes e mortes. Essa tragédia está na conta de Juscelino e de todos os utópicos do período. São as contradições do país, das obras faraônicas, das loucuras construtivas.

Mas Juscelino nos melhorava como brasileiro. Vivia cercado de artistas. Embora não fosse um intelectual, estava longe disso, tinha a intuição de que a arquitetura era um dos pilares da formação cultural do Brasil, naquele meado do século 20. Então, construiu uma cidade com o que de melhor havia no país.

Foi assim que ele pediu a Oscar Niemeyer um palácio à altura do Brasil. O arquiteto fez ensaios, Juscelino não se sentiu satisfeito.

“Examinei-o com a maior atenção e concluí que, apesar do seu esforço, ele não havia emprestado à obra a monumentalidade que se impunha à residência do chefe do governo. Conquanto fosse uma obra-prima de concepção artística, o edifício não refletia, no seu conjunto, o que eu, de fato, desejava. Disse-lhe, então, com a franqueza permitida pela amizade que nos ligava: ‘O que eu quero, Niemeyer, é um palácio que, daqui a cem anos, ainda seja admirado”. Assim, Juscelino conta em Por que construí Brasília.

Passou-se mais da metade dos 100 anos, e o Palácio da Alvorada continua sendo uma aparição na paisagem, lírico, colonial, moderno, flutuante, potente, digno, monumental embora delicado. E continuará por mais um milênio, se milênio houver.

Quando, então, o Palácio da Alvorada vira palco da ignomínia do atual ocupante só nos cabe olhar em perspectiva histórica para o passado e o futuro. Esse tempo haverá de passar, haveremos de fazê-lo passar e a obra de Niemeyer voltará a abrigar presidentes dignos do cargo.

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

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