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Doutor Lucio, neste Carnaval, a-ha, u-hu, o pilotis é nosso!

Carta-carnavalesca para o inventor de Brasília, que, na Quarta-feira de Cinzas, completa 118 anos: instantes de utopia no ônibus e na chuva

atualizado

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Rejane Agra/Especial para o Metrópoles
Conceicao-21
1 de 1 Conceicao-21 - Foto: Rejane Agra/Especial para o Metrópoles

Querido doutor Lucio,

Escrevo para lhe desejar feliz aniversário. O senhor é muito discreto, mas não me esqueci que depois de amanhã (27/02/2020), o senhor completa 118 anos. Tenho um presente que não é meu, é de um bloco de Carnaval. Na verdade, de dezenas, mas escolhi um e já já o senhor perceberá a razão da escolha.

O bloco se chama Vai Quem Fica, sai do fim da Asa Norte, na segunda-feira de Carnaval, e segue até onde as pernas e o fôlego alcançam. No Carnaval dos 60 anos de Brasília, o Vai Quem Fica ocupou os pilotis dos quase indiferentes blocos das superquadras. Os primeiros foliões começaram a chegar antes das 10 da manhã e os últimos se despediram depois das oito da noite.

— A-ha, u-hu, o pilotis é nosso!

Doutor Lucio, foi de chorar, mas a chuva chorava por todos nós — de alegria, doutor Lucio, de alegria. Pertencíamos uns aos outros, pertencíamos à cidade e a cidade nos pertencia, esta cidade não poucas vezes tão indiferente, agressiva e cruel com tudo o que possa minimamente perturbar o bem-estar gelado dos moradores das superquadras.

Foliões chuviscados pulavam debaixo de um bloco quase no fim das 300 Norte (não me pergunte qual, porque eu estava tão foliã que nem repórter fui). Tive leve sensação de que logo logo algo iria perturbar aquele êxtase de pertencimento — a polícia?, um morador mais exaltado?, o síndico? a Agefis?, a sociedade dos candangos ricos e infelizes?

Ninguém nos perturbou e seguimos ocupando a Asa Norte.

Rejane Agra/Especial para o Metrópoles
O Carnaval de Brasília toma conta das ruas e dos pilotis

A bandinha do Vai Quem Fica é um luxo, doutor Lucio. Brasilienses entre 25 e 35 anos tocam marchinhas antigas e percorrem as calçadas das superquadras, rentes aos pilotis, para (finalmente!) realizar a utopia civilizatória que o senhor tanto sonhou e pela qual tanto estudou, projetou e defendeu.

Já era noite quando o Vai Quem Fica desceu rumo ao Eixinho Oeste. Éramos não mais que 30 foliões na escuridão, incluídos os músicos. E eles são muitos que vão entrando e saindo durante todo o dia, com seus instrumentos diversos.

O mais incrível, doutor Lucio, foi quando o bloco parou no Eixinho Oeste e subiu num ônibus que vinha do fim da Asa Norte em direção à Asa Sul. O sorriso do motorista foi das coisas mais lindas que vi neste Carnaval: o homem negro (ou moreno, dependendo do pantone do freguês) abriu um sorriso que parecia vir do fundo rio das alegrias inesperadas.

Ele esperou, sem pressa nenhuma, que a estranha trupe de passageiros entrasse no ônibus quase vazio. Brasilienses armados de trompete, tumba, saxofone, chocalho, prato, bumbo, surdo. O ônibus estava vazio, na noite chuviscosa de segunda-feira.

Alguns não tinham dinheiro vivo para a passagem (o senhor deve estar sabendo que o transporte coletivo em Brasília é um dos piores do mundo e dos mais caros). Quem tinha pagou pelos que não tinham.

A passageira carregada de sacos plásticos, cabelo preso com grampo, nos olhava com a mesma irritação da classe média/alta das superquadras — a infelicidade é democrática. Mas logo se deixou encantar e começou a filmar o espetáculo mambembe, carnavalesco, cena de filme de Fellini.

Na altura da 106 Norte, descemos todos. E, em mais um instante utópico, atravessamos a suja e vazia passagem subterrânea, sempre ao som da bandinha felliniana. Um rapaz pediu pra eu não ficar muito pra trás — temia por minha segurança. Esses meninos e essas meninas brasilienses tão cheios de humanidade.

E assim seguimos, doutor Lucio, até o Carnaval da 404/405 Norte.

Fui pra casa com uma vontade danada de conversar com o senhor, de lhe contar tudo o que vivi nas 10 mágicas horas de chuva, Carnaval, desconcertante alegria e alentadora sensação de pertencimento. Não estamos sós, e somos muitos.

Feliz 118 anos, doutor Lucio.

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

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