As escadas rolantes da Rodoviária, a humilhação e o nazismo

Faltando 20 dias para o fim do prazo que a Justiça deu para o conserto das escadas, 700 mil usuários seguem humilhados e não só eles

Conceição Freitas
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São quase onze e meia da manhã. Dona Zilma desce as escadas da Rodoviária, apoiada na neta e numa bengala. Reclama que os elevadores também estão com defeito, mas há nela uma cansada resignação. Até sorri quando peço para fazer uma foto.

Faltando 20 dias para o fim do prazo de três meses que o juiz Jansen Fialho de Almeida deu para que o GDF tomasse providências para as escadas e os elevadores voltassem a funcionar, os 700 mil usuários da Rodoviária do Plano continuam a ser humilhados diariamente, há décadas. (Até as quatro escadas rolantes de acesso ao metrô estão quebradas.)

Humilhação extrema para os mais velhos, os doentes, os mutilados, os mais gordos, as grávidas, os viajantes e suas malas, os ambulantes e suas mercadorias, as mães com bebês de colo, os exaustos, os esfomeados, os enfraquecidos.

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Caso aconteceu na Rodoviária do Plano Piloto
Estabelecimento é tradicional no DF
André Borges/Especial para o Metrópoles * Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

(Um homem negro, cadeirante, ficou horas de frente para a escada da plataforma inferior, olhando para cima como quem não tem mais para onde ir).

Na mesma manhã que dona Zilma descia as escadas, os brasileiros que ainda têm um mínimo de senso de humanidade estremeciam a internet com assombro e indignação diante do vídeo de inspiração escandalosa e criminosamente nazista do agora ex-secretário de Cultura Roberto Alvim.

Dona Zilma não fazia ideia do que estava acontecendo a menos de 1 km dali, na Esplanada dos Ministérios. Só pensava em vencer os 50 degraus para alcançar o ônibus que a levaria ao Jardim Ingá, a 50 km da Rodoviária do Plano.

Para dona Zilma, para o negro da cadeira de rodas, para os homens que dormiam na entrada dos elevadores, para as famílias que estão morando na Rodoviária, a ameaça do nazismo é demasiada abstração. Mas não é, é real como a humilhação que sofrem os que precisam da
Rodoviária para ir e vir ou para morar.

Forçados a subir diariamente, duas vezes ao dia, 50 degraus para alcançar a plataforma superior, os 700 mil passageiros estão sendo silenciosamente subjugados na sua condição humana, todos os dias. E no Marco Zero da capital construída para humanizar a vida nas grandes cidades, a capital da esperança, no epíteto inventado pelo francês André Malraux.

Mistura de urbanismo e arquitetura, de trama viária, terminal de transporte, praça de alimentação, centro comercial e feira de ambulantes, a Rodoviária é a obra mais importante do Plano Piloto e uma das maiores e mais sofisticadas – embora seja hoje a ruína de si mesma.

As escadas rolantes quebradas e o transporte público, um dos piores do mundo, são a face mais cruel do desprezo dos governantes pelos que não têm carro numa das cidades mais rodoviárias do mundo.

Antes do meio-dia da sexta-feira (17/01/2020), o secretário de Cultura havia sido exonerado e talvez dona Zilma já estivesse no ônibus que a levaria para a casa.

Nem a saída do secretário claramente nazista nem o descanso de dona Zilma deveriam nos tranquilizar. As escadas rolantes continuam quebradas, os 700 mil usuários seguem calados e, exceto pela gritaria catártica da internet, todos os 210 milhões de brasileiros também.

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

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