A moça do caixa e o corona: “Que saudade da minha vida! Quero ela de volta”

Em uma ida ao supermercado, ouvi um assombro de vida daquela mulher mascarada e divertida que me atendeu. Viver é tão bom!

Conceição Freitas
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– Que saudade da minha vida, irmã! Como era boa e eu não sabia. Sinto falta até do trânsito! Agora é uma pasmaceira…

A caixa do supermercado está de máscara e devo ser a primeira cliente do dia, ainda não são oito da manhã. Ela tem mais de 50 anos, por certo.

– Milho! Adoro milho, ela exulta como quem vê uma trufa, o fungo, ou uma trufa, o chocolate. É apenas uma latinha de milho em conserva, R$ 1,59 a unidade.

A caixa continua:

– Gosto de milho de tudo quanto é jeito. Faço no arroz, com frango, ponho na salada… sopa… hum, lá em casa nunca deixo faltar milho. Meu marido reclama que deixo quase todo o meu salário no supermercado, que trabalho pra comer. Tem coisa melhor? Já criei meus filhos, agora trabalho pra mim, pra fazer o que quiser com o meu dinheiro, né, não?

Faço algum comentário só pra ela continuar falando. Aquele fluxo de vida me alegra, eu que tive medo de dirigir de casa até o supermercado, primeiros sintomas de uma quarentena de 50 dias.

– A vida era tão boa, nera, irmã? A gente nem sabia como a vida era boa. Agora essa coisa esquisita que a gente não sabe o que é, não vê, não sente o cheiro, não pega. Eu queria ver um bicho desse, esse tal de corona, queria pegar ele pelo pescoço! Não ia sobrar nem um caquinho de vírus. Eu nunca tive medo de nada,”mermã”, de nada. Tudo nesta vida eu enfrentei, criei quatro filhos, dois com o primeiro marido, um vagabundo cachaceiro que me batia. Botei ele porta afora. Arrumei outro, um santo, benza Deus, me ajuda em tudo por tudo.

– Essa manga, como chama? Palmer, né? A senhora me perdoe mas essas frutas de supermercado não têm gosto de nada, vai ver esse tal corona já estava tirando o gosto das coisas faz muito tempo. Tiraram o gosto das frutas e agora estão tirando o gosto da gente!

– Ah, irmã, viver é bom demais! Não vivi muito, não deu tempo, trabalhava de domingo a domingo, nas casa alheia, os meninos na vizinha, uma santa, se não fosse ela eu não teria criado meus bichinhos.

– Logo agora, com eles criados, cada um cuidando da sua vida, eu nesse emprego de Deus, achando que tinha chegado a hora de curtir a vida, vem esse vírus do demônio, que Deus me perdoe, irmã, mas só pode ser coisa do capiroto (faz um sinal da cruz).

Pra minha sorte, a embalagem de pão de hambúrguer estava sem código de barras e foi preciso chamar a moça de patins. Assim pude ouvir um pouco mais daquele assombro de vida por trás da máscara.

– Irmã, que Deus me perdoe, mas isso é um recado de Deus. Olhe, estou aqui há um ano quase. Fico impressionada com o que o povo rico gasta com supermercado. Todo o meu salário numa única compra! Uns queijos de R$ 50! Uns vinhos de R$ 80! Uma gastação sem medida. Com oitenta reais faço a compra da semana lá pra casa.

– E rico é assim, irmã, ele nem olha na cara da gente. Nem dá bom dia. A senhora não deve ser rica, ela diz e fica desconcertada, me olha pra ver se me ofendi. Me desculpe, eu e minha boca. Meu marido diz que quando eu morrer, ele vai ter de arrumar dois caixões, um pra mim e outro pra minha língua. Se a irmã é rica, nem parece.

Digo que sou pobre e que também não gosto de rico. Rimos as duas. Ela então se anima ainda mais.

– Irmã, pra que tanto dinheiro, me diga? Olha, eu até quero umas coisas, um colchão melhor, que o meu está me doendo as costas e meu velho anda reclamando que tem de afundar pra sair da cama. Queria rebocar as paredes da casa, ainda não deu. Botar uma tinta cor de abóbora, pendurar um redão na varanda, fritar uns lambaris e uma cerva geladinha. A senhora bebe? Pense num trem bão! Se eu tomar mais de uma, meu marido diz que vai me amarrar na grade e chamar os bombeiros. Eta homi chato! Tem medo de me perder, não vive sem mim, o pobrezinho. Nem eu sem ele…

– Irmã, esse negócio esquisito vai demorar muito? Gosto tanto de viver, irmã, e eu nem sabia que gostava tanto, e ri, meio sem jeito. Quero a minha vida de volta.

– Vai com Deus, irmã! Que Deus te abençoe.

Não deu outra. Coloquei as compras no carro, tirei a máscara e chorei. Viver é tão bom!

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

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