Ou acabamos com as redes sociais, ou elas acabarão com a gente

Em 2020, o cancelamento virou cultura, depois pandemia e, aos poucos, vai tomando o lugar do Judiciário

Anderson França
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Parece que faz 10 anos que a gente tá preso em 2020.
Agosto, faltam ainda 4 meses dessa angústia, e sabe lá o que nos reserva 2021, porque não temos nenhuma garantia que o caos respeite o calendário gregoriano.

E um dos fatos mais presentes em 2020 é, como todos sabem, a pandemia do cancelamento. Em 2020, o cancelamento era uma prática de adolescente, virou cultura, depois pandemia, e aos poucos, vai tomando o lugar do Judiciário.

Se você veio do ano 2000 numa máquina do tempo e está lendo isso agora, e acha que estou sendo irônico, anota num papel, volta pra 2010, e pede pra eles:

Continuem usando o Nokia Tijolão.

Nokia Tijolão, obra presente no Museu de Grandes Novidades de Cazuza. No meu tempo, era hype ter um Nokia Tijolão. Bateria durava 50 anos e tinha jogo de cobrinha. Mas o mais importante: ele fazia e recebia ligações.

Porque, no começo do século, um celular fazia essencialmente isso: ligava pra alguém. E pasme, sem fio. Você podia sair da sala pro banheiro, do banheiro pro quarto, do quarto pra cozinha, da cozinha pra rua, até dentro do ônibus, dava pra ir de um bairro pra outro falando no mesmo telefone, sem fio.

Pra geração que viveu tropeçando em fio de telefone fixo, ter um telefone sem fio eterno, que pegava em todo lugar, era o estágio final da evolução. O homo celularis.

Mas aí Satanás operou.

E colocou uma câmera de fotografar no celular. Naquele tempo, a gente fotografava usando câmera fotográfica, embora digital, um luxo. Mas é aquilo, comida se faz na panela. Foto se faz na câmera. Até que apareceu um celular com uma câmera, ingênua. E ali surge o primeiro selfie e o primeiro nudes. Primeiro nudes que eu fiz foi em 2004, acho. A câmera de baixa resolução, aparecia uma SUGESTÃO de biloca. Não dava pra ver detalhes. Mas a gente usava a imaginação.

Pois é, mas o celular ganhou outro recurso. O browser, para acessar internet. E depois o primeiro aplicativo. E depois os aplicativos de banco, de TV, de filme, e no meio da explosão de apps, os aplicativos de redes sociais.

Aí todo mundo, ao ligar o celular, já baixava o Facebook e Twitter, antes mesmo de pagar no caixa e sair da loja.

Alguns criaram redes sociais, e nós nos permitimos entrar nesse ambiente. É responsa nossa. Zuckerberg alimentou o que a gente queria: saber da vida dos outros, invejar as amigas, fazer fofoca, trocar nudes e malhar o Judas.

O ser humano é sujo antes das redes. Já fazíamos tudo isso antes de celular com internet. Linchamento digital, antes, era na rua mesmo. Em alguns pontos da Zona Oeste do Rio, ainda é.

Já linchávamos, adulterávamos, mentíamos, criávamos conflito, tudo isso, antes de existir o papiro.

Yuri Marçal esses dias refez o julgamento da mulher adúltera, relatado no Evangelho de João. Um grupo de pessoas, que pegou em pedras, pra matar uma mulher pega em adultério – embora o HOMEM – como SEMPRE – vazou ileso.

Jesus olhou e mandou: Quem não tem pecado, atire a primeira pedra!.
Como quem diz:

Sei dos podre de todo mundo aqui no setor. No caso, na Judéia inteira.
Explana a mina e o cavaco canta.

Marina Abramovic, Xuxa Meneghel dos tilelê da Vila Madalena, fez um experimento, em 1974, considerado “perturbador”: ficou 6 horas parada e deixou as pessoas fazerem o que quisessem com ela. Ou seja: deitaram os cabelo.

Desumanizaram a artista, revelando o comportamento destrutivo que nos habita.

Então.
As redes sociais criaram a possibilidade de ter essa experiência com perfis de pessoas. Porque os perfis ficam ali, pra você interagir, a menos que você seja bloqueado. Mas, se quer existir na rede, você está exposto.

Nisso, vem um, te taca um tomate. Outro, um ovo. Um mais animado, uma lata de cerveja. Em poucas horas, você está enterrado em julgamentos. Justos ou injustos.

E quando justos, sempre aparece quem rompe os limites.
E não vamos mentir, todos já fizemos isso.

A questão é:
A internet está se tornando o novo sistema de patrulha e judiciário? Ele encontra os delitos, ele expõe, ele julga, ele sentencia?

Sim.
E Zuckerberg sabe disso.

As redes sociais estão se tornando até o novo sistema eleitoral – já se tornaram.
E Mark, como bom capitalista, não quer saber quem chora, quer é vender lenço.

Mark ganha com a esquerda, ganha com a direita, o mundo explode, ele pega um barco e vai morar num bunker marítimo.

E literalmente, vocês que lutem.

O cancelamento tem elementos pra se caracterizar como cancelamento. Ele precisa de um denunciante ou vítima, uma denúncia, um agressor e uma plateia, que teatraliza a dor e a causa.

Nisso, os times pró e contra se formam, e durante um ou dois dias, o assunto entra pros trends.

É receita de bolo.

Seja uma agressão real, seja uma fake news, a lógica é denúncia, exposição, linchamento.

Ocorre que tem tiro saindo pela culatra. Bryon Bernstein, conhecido influencer dos games, se suicidou depois de ser cancelado no Twitter. Pediu a namorada em casamento pelas redes, e os seguidores o acusaram de ser abusivo e estar pressionando a moça, que só viu a mensagem depois dele ter se matado, não suportando os milhares de xingamentos.

Todo mundo já sabe do caso de Emmanuel Cafferty, que foi acusado de ter feito um gesto da extrema-direita em San Diego, foi cancelado e perdeu o emprego. J.K Rowling, acusada de transfobia, Gabriela Pugliese, por furar confinamento, José Mayer, por assédio sexual e o caso mais recente, Lilia Schwarcz, por criticar com dicção racista o último trabalho de Beyoncé, Black Is King.

Há outros casos. Os blogueiros e apoiadores de Bolsonaro, bloqueados mundialmente, Olavo de Carvalho, bloqueado no PayPal, nesse caso não exatamente um “cancelamento”, mas derivado de ações no judiciário e mesmo um início de pressão nas redes, como no caso de Olavo, que perdeu dinheiro por causa do movimento Sleeping Giants.

Não entre no mérito. Há casos aí gravíssimos, há casos menos graves, e há erros.

Mas não tem um organismo de mediação, de controle e calibragem da multidão. Apanha quem, como Sérgio Camargo, chama movimentos negros de “defensores de bandidos e vagabundos”, e apanha Lilia que, embora errada, já deu contribuições relevantes na literatura antirracista brasileira.

Mas tava errada? Tava, claro. Ocorre que, muito errado, pouco errado, apanha igual.
E é aí que mora o perigo.

As redes sociais não têm rito processual. Não têm direito de defesa, quando se aplica, e em tese, deveria sempre. Porque justiça não é sobre vingança. Nem justiçamento. Eu acho, eu, pessoalmente, que tem horas que a vontade é de tacar fogo no Congresso, ou na Farm. Mas eu preciso reconhecer que muito do meu desejo, mesmo expresso nas redes, precisa estar submetido a uma coisa chamada Estado de Direito.

E não é isso que está acontecendo.
Aos poucos, as redes estão se tornando um judiciário paralelo, e pior, substituindo o próprio. Problemático, porque, mesmo que a pessoa cometa erro grave, nós punimos, mas não temos a menor ideia do que fazer para reintegrar essa pessoa no convívio social. E voltamos ao José Mayer. Zero passação de pano. Mas se ele fosse preso, por exemplo, aquilo que se define como pena, uma hora ia acabar, e ele ia ser publicamente solto. Ia ter pago a pena.

Na internet não é assim que funciona.
Uma vez punido, punido para sempre.
Por isso se diz: cancelado.
Você está deletado. Apagado. Cancelado. Aniquilado. Sua existência acabou.

Lembra da Marina Abramovic?
Tipo isso.

Não.
Nem sempre nosso desejo, compreensível, de vingança, haverá de ser o meio para agir socialmente. Precisamos punir o erro, e tratar o agressor. É sobre isso os Direitos Humanos. Quer dizer, até onde frequentei as aulas. Não sei se mudou.

Até acho que sim, pau verbal em quem vacila.
Mas no dia seguinte, resta o quê pra pessoa? Dar um tiro na cabeça?

As redes sociais são um fracasso na promoção de justiça, um sucesso na vingança.
E uma arma tóxica para a democracia. Bolsonaro, esse lixo, continuaria sendo lixo, mas desconhecido, se não fossem as redes sociais. Ele e seus filhos só chegaram ao Planalto por violar lei eleitoral e usar as redes.

Não me peça provas.
Sente e espere.

Deu errado.
Estamos punindo sem limites, matando, tirando empregos, assassinando reputações, elegendo cretinos, e uma vez ou outra, fazendo algo justo. Mas no grosso, é só chorume.

Está chegando a hora de pensarmos o fim das redes sociais.
E eu não sou o único que diz isso.
Saia das redes, leia alguns livros.
Comece por Huxley.

E você, que veio na máquina do tempo, leve esse bilhete.
Não abandonem o Tijolão.

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

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