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“Um terror”: inocentes são presos após erros judiciais em Goiás

Problema se estende a outros estados, como RJ; porta-voz de grupo do CNJ, ministro Rogerio Schietti diz que há falhas de reconhecimento

atualizado

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Foto: Vinícius Schmidt/Metrópoles
Mecânico André Bernardo Rufino diz ter sido preso por engano no lugar de traficante, em Goiânia, Goiás
1 de 1 Mecânico André Bernardo Rufino diz ter sido preso por engano no lugar de traficante, em Goiânia, Goiás - Foto: Foto: Vinícius Schmidt/Metrópoles

Era para ser um dia qualquer, mas virou pesadelo. O mecânico André Bernardo Rufino Pereira, de 31 anos, saiu cedo de casa para o trabalho, e, no serviço, foi preso por tráfico de drogas, na capital de Goiás.

Em outro caso, o pedreiro Valter Ferreira da Silva, 50, acabou detido em sua residência por roubo, enquanto fazia almoço para filha, em Jaupaci, oeste goiano. Eles não se conhecem, mas têm algo em comum: prisão por engano.

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Assim como outros brasileiros, André e Valter sofreram uma reviravolta por causa de falhas do sistema de Justiça criminal no país, que ainda passa por episódios de erros judiciais. Os casos se repetem, apesar do avanço tecnológico, propulsor de mecanismos para identificar, localizar e rastrear corretamente suspeitos e condenados.

Em entrevista ao Metrópoles, o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Rogerio Schietti, porta-voz do grupo de trabalho do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) destinado a evitar condenação de inocentes, diz que a solução para o problema é desafio que está “no radar”.

“Existe uma quantidade muito grande de pessoas ainda sujeitas a risco de serem presas ou condenadas com base em ato [de reconhecimento pessoal] tão falho”, afirma o ministro.

“Um terror”

André e Valter exemplificam casos ainda mais problemáticos, já que, segundo eles, as polícias nem consideraram as fotos dos criminosos que constam nos processos criminais e são diferentes das imagens dos inocentes. Por isso, dizem ter sido alvo de diferentes mandados de prisão por engano. Viveram o tormento atrás das grades.

O mecânico conta que o problema ocorreu após seus documentos serem roubados, e os dados dele usados por um traficante de drogas que morreu há seis anos. O pedreiro, por sua vez, afirma ter nome idêntico ao de um condenado por roubo. “Fui preso no meu trabalho sem motivo. Um terror”, diz André Bernardo.

O mecânico aguarda julgamento definitivo, pelo Tribunal de Justiça do Maranhão (TJMA), marcado para a próxima terça-feira (8/3), no processo em que ficou preso por 16 dias neste mês, no lugar de traficante que teria usado os dados dele antes de morrer. “Torço para que isso se resolva logo”, diz.

Após a defesa mostrar que a foto do traficante condenado é diferente e estava nos autos, o TJMA revogou a prisão preventiva do mecânico ao reconhecer o erro. Ele saiu da cadeia aos prantos e abraçou a filha de 3 anos, a esposa e amigos.

O choro também engoliu o pedreiro ao ser solto, em junho de 2021, pela segunda vez, depois de ficar quatro dias preso no lugar do foragido por roubo que tinha o mesmo nome dele. “Estou tomando remédio e com medo de virar depressão”, afirma Valter.

“Ilegalidade no reconhecimento”

Desde outubro de 2020, os inocentes passaram a ver uma luz na via-crúcis para não serem condenados injustamente, com a mudança de entendimento fixada no STJ. Na época, o ministro Schietti relatou processo em que a Sexta Turma da Corte absolveu outro homem condenado por roubo, pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC), após declaração de vítimas que o identificaram apenas em foto apresentada pela Polícia.

“Era muito comum encontrar pessoas condenadas em que a defesa já havia alegado algum tipo de vício ou ilegalidade no ato do reconhecimento. O Judiciário dizia que os pequenos erros não o tornavam inválido porque o legislador teria dado apenas uma recomendação e que, portanto, o descumprimento dessas formalidades não representaria algo importante que impusesse a perda de validade desse ato”, explica o ministro.

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Desde outubro de 2020, quando mudou seu entendimento, o STJ absolveu ou revogou a prisão preventiva de 89 pessoas por terem passado por procedimento de reconhecimento em desacordo com a lei. Essa situação não pode servir de base para a condenação delas, nem mesmo se for confirmada na fase judicial.

“Dados muito expressivos”

No período, houve pelo menos 28 acórdãos das duas de turmas direito penal do STJ e 61 decisões monocráticas da Corte que absolveram o réu ou revogaram a prisão preventiva em razão de graves dúvidas sobre o reconhecimento feito em desacordo com a lei.

“Todas essas decisões reconheceram o erro do reconhecimento, quase sempre fotográfico. São dados muitos expressivos”, afirma Schietti.

Pesquisa da Defensoria Pública do Rio de Janeiro identificou que, de 2014 a 2019, 53 pessoas foram acusadas indevidamente no estado a partir de reconhecimento fotográfico. Todas acabaram absolvidas, mas 50 delas chegaram a ser presas preventivamente. Apenas 20% eram brancas, o que, segundo o órgão, “sugere algo até intuitivo, o racismo estrutural”.

Produzida pela Comissão Criminal do Colégio Nacional dos Defensores Públicos-Gerais (Condege), outra pesquisa reuniu dados apurados por defensores de dez estados, relativamente ao período 2012-2020, e revelou a ocorrência de pelo menos 90 prisões injustas motivadas por reconhecimento fotográfico (a maioria no Rio de Janeiro). Dos 79 casos com informação sobre cor de pele, 81% eram de pretos ou pardos.

“Absolutamente insustentável”

Coordenador do Núcleo de Defensorias Especializadas Criminais da Defensoria Pública do Estado de Goiás (DPEGO), Marcelo Penna alerta para a necessidade de o sistema de Justiça buscar solução imediata para o problema. “Essa questão do reconhecimento pessoal é algo extremamente falho. Uma mudança cultural é imprescindível”, ressalta.

“Estes episódios revelam, para além de deficiências estruturais, forte enraizamento da cultura jurídica do encarceramento. Situações assim expõem a fragilidade do nosso sistema de Justiça e servem como alerta para os perigos decorrentes do manejo autoritário do processo penal”, diz o vice-presidente da Escola Superior da Advocacia de Goiás (ESAGO), Rodrigo Lustosa, vinculado à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

Coordenador da Área Criminal do Centro de Apoio Operacional do Ministério Público de Goiás (MPGO), o promotor de Justiça Felipe Oltramari sugere que, “na presença de dúvida razoável, se busque medida alternativa à prisão, como monitoramento eletrônico, por prazo curto de verificação”. “Reprimir sem motivo a liberdade de uma pessoa por um dia é algo absolutamente insustentável”, acentua.

“Erros judiciários”

O grupo do CNJ deve apresentar até setembro proposta de regulamentação de diretrizes e procedimentos para o reconhecimento pessoal com o objetivo de evitar a condenação de pessoas inocentes. O colegiado é formado por 26 representantes do Judiciário, do Ministério Público, da Defensoria Pública, da segurança pública, da advocacia e de outras instituições.

“Vamos produzir um projeto de lei que será encaminhado ao Congresso, e às escolas judiciais nos estados, uma solicitação de inclusão desse conteúdo com os novos avanços. O principal produto será uma resolução em relação à Justiça com apresentação de melhores critérios aos juízes [para decretação de prisão]”, antecipa o ministro. “Tenho certeza de que vamos criar atos que vão auxiliar muito na redução de erros judiciários.”

André e Valter veem na promessa do CNJ um alento para que mais pessoas não passem pela mesma “humilhação”, como dizem, provocada por casos de prisão por engano e injusta, o que deixa cicatrizes na vida de inocentes.

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