Surdez profunda pode ser “curada” com implante coclear. Saiba o que é

Procedimento é único da medicina que devolve um sentido aos seres humanos e ficou conhecido depois de vídeo de paciente viralizar nas redes

Carolina Samorano
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O analista comportamental Joaquim Emanuel Barbosa foi apaixonado por música toda a sua vida. Ironicamente, passou 32 aniversários, dos 38 que completou, sem ouvir quase ruído algum. Joaquim nasceu com surdez congênita profunda. Até os 4 anos, quando o diagnóstico certeiro chegou, foi identificado com autismo, retardo mental, dificuldade motora. Tudo errado. Quando um médico finalmente descobriu o motivo da sua dificuldade em falar e aprender, praticamente entregou aos seus pais um certificado de invalidez permanente.

“Ele falou para minha mãe que eu nunca falaria, estudaria ou trabalharia. Disse que eu dependeria a vida inteira dela e do meu pai e que, se eles não tivessem condições de me criar, que me entregassem a uma instituição de pessoas com deficiência”, conta Emanuel.

A medicina da época não conhecia o que a de hoje é capaz de fazer. Há seis anos, o funcionário público sente mais do que as vibrações dos acordes que apreciou a despeito da falta de audição. Ele os escuta. Compõe. Como ele mesmo define, “degusta” cada um deles, como quem aprecia vagarosamente um prato cheio de ingredientes. Graças a uma cirurgia para a instalação de uma prótese auditiva dentro do crânio – o chamado implante coclear – Joaquim entrou para a feliz estatística que, à época do diagnóstico, soaria piada.

Segundo estimativas de especialistas, algo perto de 99% dos casos de surdez hoje são solucionáveis. A audição é o único dos cinco sentidos que a tecnologia médica é capaz de restaurar. O procedimento não é novo – é feito com sucesso há mais de 30 anos. Mas ganhou notoriedade nas últimas semanas depois que o vídeo de um paciente de Brasília recém-operado viralizou na internet. A gravação mostra o momento em que Eduardo Fávero, surdo desde a infância por causa de uma meningite, escuta a voz da filha pela primeira vez.

A história de Eduardo ainda guarda uma particularidade: embora o procedimento não seja novo, ele não era aplicável ao seu caso até recentemente, com a evolução e o refinamento da tecnologia do aparelho auditivo.

Joaquim também guarda suas vitórias contra a medicina quadrada. Não só estudou como aprendeu a falar fluentemente, mesmo sem nunca ter tido o que os médicos chamam de “memória auditiva”. Frequentou sessões de fonoaudiologia até os 14 anos. Já adulto, sua fluência verbal quase derrubou uma tese de doutorado de um fonoaudiólogo francês que teimava em provar que surdos pré-linguais jamais falariam com a mesma cadência e sonoridade que os ouvintes. “Ele voltou para a França para refazer a tese”, gaba-se.

Para além de seu próprio esforço, Joaquim também deu a sorte de ter pais teimosos. Depois do diagnóstico que, segundo o médico, o taxaria de inválido por toda a vida, sua mãe sentou no meio-fio, enxugou as lágrimas e teimou em desafiar o laudo. Como ele lembra, chegou a fazê-lo chorar de sede para pedir um copo d’água com a voz, em vez de apontá-lo. A história marcou mãe e filho para sempre e, anos depois, a esposa de Joaquim, Bárbara Barbosa.

Quando Joaquim finalmente teve condições de fazer o implante – como ele não tinha memória auditiva e já era bastante oralizado, o SUS lhe negou o procedimento –, estava com 32 anos. Laura Barbosa, hoje com 8 anos, tinha 2 à época. Havia aprendido a se comunicar com o pai com gestos, toques e mil caras e bocas sem que ninguém precisasse lhe dizer o motivo. Foi a menina que, mesmo com mais um sinal de desaprovação da medicina, deu coragem ao pai para encarar a cirurgia.

Ela sempre gostou de cantar. Quando estava no carro comigo, eu olhava pelo retrovisor e a via cantando e gesticulando. Na época, o médico disse que tinha uma chance pequena de ganho auditivo, cerca de 5% apenas. Mas eu queria conseguir escutá-la cantar.

Joaquim Emanoel Leitão Barbosa

Um mês depois da cirurgia, o aparelho foi ativado. Joaquim se lembra dos primeiros ruídos, como uma criança que acaba descobrir que o mundo é um lugar caótico. A primeira coisa que lembra de ter escutado com clareza, a que confirmou o sucesso do procedimento, foi Laura. “Papai, está me ouvindo?”, ela perguntou. Três anos depois, quando o caçula Joaquim nasceu, a sala de parto, tão silenciosa na chegada da primogênita, era a tradução do caos.

“O nascimento da Laura para mim parecia cena de um filme de guerra, quando eles colocam as imagens em câmera lenta com uma música clássica ao fundo. O do Joaquim era o caos. Metais batendo, os médicos correndo”, lembra. Quando ouviu o choro do menino pela primeira vez, fez uma pergunta que quase tira do prumo o doutor, de tanto espanto: “Esse é o som do meu filho?”.

Os sentidos completos
Joaquim conta que uma vez, por meio da Associação Brasileira dos Surdos Oralizados, que fundou e hoje coordena, conheceu uma paciente cega que ficou sem a audição de repente. Ao questioná-la sobre qual dos dois cenários achava pior, escutou que ela preferia não enxergar do que não ouvir. “A cegueira me tira o ambiente. A surdez, o convívio com as pessoas”, justificou.

Talvez por isso, a Organização Mundial da Saúde considere o implante coclear o avanço médico que mais benefícios trouxe à qualidade de vida. No Brasil, o SUS já oferece o procedimento desde 1999, em cerca de 30 centros especializados espalhados pelas capitais. De dezembro passado para cá, 12 deles passaram a implantar os aparelhos bilateralmente (ambos os ouvidos). Na rede particular, uma norma da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) obriga convênios a arcarem com os custos do procedimento e da manutenção do aparelho, que é bastante cara.

No DF, apenas o Hospital Universitário da Universidade de Brasília opera para implantes. Pelas contas da Associação Brasileira de Otorrinolaringologia (ABORL), até 2016 o Brasil tinha realizado cerca de 15 mil implantes na rede pública de saúde e cerca de 2 mil na privada.

No meio médico, a cirurgia é considerada de alta complexidade e chega a durar de duas a quatro horas. Por isso o número reduzido de centros especializados, públicos ou particulares. “É uma cirurgia delicada. Os riscos envolvem desde paralisia facial até complicações anestésicas, como em qualquer outra cirurgia”, reforça Miguel Ângelo Hyppólito, coordenador do departamento de implante coclear da ABORL e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto.

O aparelho é instalado dentro do crânio do paciente e ligado a um equipamento externo, que funciona a bateria. A ativação é feita 30 dias depois, com acompanhamento de uma equipe multidisciplinar, que inclui fonoaudiólogos e até psicólogos. O mundo, afinal de contas, é um caos sonoro e toda ajuda é bem-vinda. O sucesso, no entanto, é quase sempre garantido.

“A experiência de som do implantado é muito próxima da que o ouvinte tem”, garante Hyppólito. “No caso de pacientes que ouviam e ficaram surdos depois, na infância ou adultos, os relatos são de que, com cerca de seis meses de aparelho, o som volta a ser como antes da perda, com algumas leves diferenças”, explica o especialista.

De acordo com estudos mais recentes, em casos de surdez congênita ou precoce, antes da fase de oralização, os benefícios do aparelho são ainda maiores do que aqueles que se submeteram à cirurgia já adultos, como Joaquim. “Se a surdez é detectada precocemente, a indicação é que o implante seja feito o quanto antes, com cerca de 1 ano de idade. Há pesquisas que mostram que, dessa forma, ele passa a ter um desenvolvimento auditivo normal, como uma criança ouvinte. Em termos de custos populacionais e sociais, acaba sendo uma vantagem até para o governo”, emenda.

É o caso de Sofia, hoje com 1 ano e 11 meses. Há sete, suas descobertas sensoriais incluem também os sons, graças à cirurgia de implante. Sofia e a irmã gêmea, Clarice, nasceram prematuras, com apenas 24 semanas de gestação. Foram três meses de incubadora até que estivessem prontas para desbravar o mundo. Na saída da maternidade, o Teste da Orelhinha acusou uma deficiência auditiva em Sofia, causada, na desconfiança dos médicos, pelo excesso de antibióticos e o tempo na UTI neonatal.

Sofia, de 1 ano e 11 meses, deve desenvolver a audição normalmente com a ajuda do implante

 

“No dia, era um misto de emoções. Estávamos muito felizes porque finalmente elas haviam tido alta e, ao mesmo tempo, o teste da Sofia veio alterado”, conta a mãe das meninas, a bióloga Isabel Waga. “Depois, fomos percebendo que a Clarice se assustava mais, respondia mais aos barulhos”.

O teste foi confirmado meses depois por exames mais específicos, quando Isabel descobriu em Brasília o especialista que acabaria dando, literalmente, ouvidos à menina, o otorrinolaringologista Fayez Bahmad – o mesmo responsável pela cirurgia de Eduardo Fávero, do vídeo que correu o Brasil.

Os testes acusaram que a pequena tinha perda profunda de audição em ambos os ouvidos. Sofia usou um aparelho convencional por três meses para estimular o nervo auditivo, começou as sessões de terapia com uma equipe especializada e logo teve a cirurgia agendada.

Hoje, fora os “acessórios” externos que ganhou depois dos implantes, pouca coisa a diferencia da gêmea idêntica. As duas vibram juntas com os sons do chocalho de brinquedo e dividem o papel onde rabiscam suas obras de arte com giz de cera. Como tem uma memória auditiva poucos meses à frente da irmã, Clarice é mais desenvolta com as palavras. Mas, segundo as expectativas, não por muito tempo: as gêmeas devem frequentar juntas os primeiros anos de escola.

Sofia!

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Daquelas fotos que não precisam de legenda! ❤️

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A prematuridade toda é um desafio. Sabíamos que podia ter alguma sequela. Mas, de todas sobre as quais nos informamos, ainda bem que ela teve uma tratável. As coisas foram, de certa forma, caminhando naturalmente.

Isabel Waga, mãe de Clarice e Sofia

De lembrança da cirurgia, Sofia deve levar consigo por alguns anos ainda as sessões com a fonoaudióloga e os processadores externos – os quais Isabel espera que ela exiba com orgulho daqui a alguns anos, em vez de escondê-los, já que devem acompanhá-la pelo resto da vida. As peripécias e aprendizados das duas são registrados no Instagram de Isabel, onde vez ou outra ela recebe perguntas e pedidos de ajuda de pais que acabam de se deparar com o mesmo diagnóstico da filha.

“O aparelho capta os sons por uma antena no processador e ele é transmitido aos neurônios cocleares através do eletrodo”, explica Fayez Bahmad, nome referência no procedimento no DF nas redes pública e privada e doutor pela Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. “Uma vez feita a cirurgia, ele é projetado para durar para sempre”, explica.

O especialista ainda reforça a importância do acompanhamento multidisciplinar depois da instalação do aparelho, que vai garantir que Sofia e outros pacientes “aprendam” a ouvir e processar cada um dos sons, até então desconhecidos.

“É claro que esse paciente vai depender de um dispositivo para escutar pelo resto da vida dele”, comenta. “Mas a projeção é que a audição chegue a limiares normais. E ele vai poder ser um médico brilhante no futuro, um juiz proeminente ou o que mais ele quiser”. O futuro de Sofia, ao que parece, guarda mesmo grandes (e absolutamente normais) aventuras.

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