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“Sarí acabou com tudo que eu sonhava”, diz mãe de menino Miguel

Em entrevista ao Metrópoles, Mirtes Renata desabafou sobre a patroa. Garoto morreu após cair de nono andar de prédio residencial em Recife

atualizado

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Arquivo pessoal
Mirtes e Miguel
1 de 1 Mirtes e Miguel - Foto: Arquivo pessoal

Mirtes Renata Santana de Souza passou a vida inteira adiando seus sonhos. Queria ser bacharel em geografia. Não conseguiu. Queria ser técnica em segurança do trabalho e morar em São Paulo. Também não conseguiu. Seus planos foram sendo destruídos pela realidade da pobreza e do racismo.

Na última terça-feira (02/06), esse futuro, tantas vezes postergado, passou a ser mais uma vez uma incógnita com a morte do seu filho Miguel Otávio, de 5 anos. O garoto caiu do nono andar de um prédio de luxo na região central do Recife. Ele foi deixado sozinho no elevador de serviço pela patroa de Mirtes, Sarí Corte Real, casada com o prefeito Sérgio Hacker.

A mãe de Miguel Otávio perdeu a capacidade de sonhar: “Ela acabou com tudo”, desabafou em entrevista ao Metrópoles.

A morte de Miguel marca uma existência de sofrimento e luta. Desde pequena, Mirtes, filha da doméstica Marta Souza e do marchante Erivaldo Francisco, tentou driblar o destino de quem nasce negro no Brasil.

Nascida no Hospital Agamenon Magalhães, na Zona Norte do Recife, em 25 de fevereiro de 1987, ela viveu até os 3 anos com os pais no Alto José do Pinho (RE) e mudou-se, acompanhando a família, para Bonança, distrito da cidade metropolitana de Moreno, às margens da BR-232.

Estudou em escolas públicas a infância e adolescência inteiras. Primeiro na Escola Municipal Gerson Carneiro da Silva, em Bonança, onde concluiu o ensino fundamental — cuja nota na avaliação do Ideb em 2017 foi 3,8 (a meta era 4,4).

Depois em Moreno, na Escola Estadual Sofrônio Portela — 15 em cada 100 alunos estão fora da faixa correta idade-série. “Fiz um curso de panificação e pastelaria oferecido pela CDL e, como era uma das melhores alunas, ganhei uma bolsa para fazer o cursinho pré-vestibular”, conta ela.

Foi aí que o primeiro sonho de Mirtes apareceu com chances de virar realidade: “Eu sempre gostei dessa coisa do clima. Era apaixonada por geografia”.

Ela se juntou aos alunos  do Vest Plus, oferecido pelo tradicional Colégio Americano Batista. A batalha para ir à universidade se revelou dura.

“Eu pegava um ônibus oferecido pela Prefeitura de Vitória de Santo Antão. Pegava o ônibus às 5h20. Só chegava em casa à tarde”, relembra. Quando saiu o resultado dos exames, a decepção: “Eu não passei por alguns décimos”.

Era 2009. Mirtes não desistiu. No ano seguinte, já sem a bolsa, ela tentou de novo.”Como eu não podia pagar o cursinho, estudava em casa, com o material do Vest Plus.” Mas a realidade mais uma vez escancarou os dentes e a jovem não passou no vestibular. “Não tive uma educação realmente de qualidade. Estudei muito, mas não consegui, infelizmente.”

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Pesque-pague

Mirtes então começou a alimentar um outro sonho: o de virar técnica em segurança do trabalho e ir para São Paulo em busca de novas oportunidades. Mas, para isso, ela teve que começar a trabalhar. Não como doméstica, mas em um pesque-pague no município vizinho de Vitória de Santo Antão (RE) — o mesmo do ônibus.

“Uma amiga arrumou esse emprego de garçonete. Mas eu só fiquei sete meses”, explica Mirtes. Na sequência, ela conseguiu um serviço num parque aquático da região. “Eu cobrava o banho das pessoas. Colocava a pulseirinha em todo mundo. Fiquei seis anos lá, mas o dinheiro era pouco.”

Segundo ela, para aumentar a renda, começou a fazer faxina na casa de Sarí, onde a mãe Marta já trabalhava – primeiro passando roupas, depois como doméstica, com carteira assinada e tudo. “Nessa época eu também comecei a fazer um curso de carpintaria oferecido pelo governo do Estado. Era o boom da Arena Pernambuco, mas só davam emprego para quem tinha experiência.”

Mas Mirtes não retrocedeu. Conseguiu trabalho em outras obras. “Comecei em uma caixa d’água de uma ONG, depois fui para um prédio ao lado do Banco Central, na Rua da Aurora, e também num conjunto residencial em Apipucos”, conta ela, citando empreendimentos de luxo no Recife, assim como as Torres Gêmeas, onde morreu seu filho Miguel.

“Foi uma época muito difícil. Eu saía de casa às 4h e só chegava à meia-noite, porque depois do trabalho eu ia pro curso de segurança do trabalho. E ainda ajudava a minha irmã Fabiana no salão de beleza dela. Eu tinha que ter dinheiro para pagar o curso.”

Foi em uma obra que Mirtes conheceu o também carpinteiro Paulo Inocêncio da Silva, o futuro pai de Miguel. “Nós namoramos oito meses e aí eu engravidei. Eu estava grávida, mas trabalhava. Queria ir morar em São Paulo mas tive que adiar meus planos”, relembra.

Miguel

“A gente se juntou quando eu engravidei e fomos morar em Orobó”, conta Mirtes. O pai de Miguel é de Machados, no Agreste de Pernambuco, vizinha à cidade em que foram morar.

“A gente viveu lá 10 meses. Miguel nasceu em Vitória. Mas resolvemos sair de lá. Meus pais estavam se separando, venderam a casa de Bonança e eu fui morar com mainha [sic], na casa que ela comprou, no Barro, no Recife, onde eu vivo hoje. Miguel chegou aqui com quatro meses.”

Mirtes decidiu que só iria procurar emprego quando Miguel fizesse 1 ano. Então, Sarí, que já fazia parte da vida da família via Marta, que trabalhava para a esposa de Sérgio Hacker, entrou de vez na história de sonhos interrompidos de Mirtes.

“Eu fazia faxina para ela uma vez por semana. Ganhava R$ 100. Ela sempre nos tratou bem. Dava as roupas que não cabia no filho dela para Miguel. Eles têm uma diferença de meses.”

Então, Sarí engravidou de novo e precisou de mais uma pessoa para ajudar em casa. A solução estava à vista: Mirtes. “Era tudo normal. A gente comia na mesma mesa que ela. Se ela comesse filé-mignon, a gente também comia. Eu não consigo ver racismo nisso.”

Até que chegou a pandemia de coronavírus. Com o patrão testando positivo para a doença, em 22 de abril, Mirtes também foi contaminada. “Sentimos os sintomas ao mesmo tempo”, resume a doméstica.

“Sarí não ofereceu a oportunidade de eu ficar em casa recebendo o salário. Ela alegou que era até melhor que eu ficasse com eles para não ficar sozinha e porque em alguma emergência seria mais fácil para eu ser socorrida. Ela pagou pelo teste, pelos remédios. Eu continuei trabalhando, fazia comida forte pra Serginho e pra mim. Cuscuz, essas coisas, porque a gente precisava ficar forte.”

Segundo Mirtes, ela ficou no trabalho porque precisava do dinheiro.”Ela perguntou se a gente queria ficar em casa, mas eu precisava do meu salário. Precisava de dinheiro para pagar as contas, para sustentar meu filho. E mainha tem 60 anos, é ex-fumante, do grupo de risco.”

Morte do filho

A mãe de Miguel evita falar da morte do filho. “Dói muito. Eu já falei demais sobre isso. Fico revivendo as coisas. E o meu foco é fazer justiça. Sarí tem que pagar”, diz ela, pausadamente.

“As investigações precisam continuar. A polícia tem que falar com Eliane”, continua ela, citando a manicure que estava fazendo as unhas de Sarí no dia em que Miguel caiu do nono andar do Edifício Pier Maurício de Nassau, no bairro de São José.

“A gente já tentou falar com ela mas ela não atende às ligações. Soubemos que ela viajou. Ela deve estar com medo, ela sabe o que aconteceu lá dentro. Eu só a vi duas vezes. Ela ficava na sala fazendo as unhas de Sarí e eu na cozinha”.

Bahia, Portugal

Mirtes pretendia ir à manifestação em frente ao Píer Maurício de Nassau na última sexta, quando cerca de mil manifestantes, incluindo seus familiares, pediram #JustiçaPorMiguel. Mas ela não foi. “Eu não consegui ir. Eu não iria aguentar. Só de olhar o prédio onde meu filho morreu pela tevê, me dói.”

A mãe de Miguel, no entanto, fortalece o tom de voz para enfatizar que a patroa não foi responsável com seu filho. “Ela confiava os filhos a mim e a minha mãe, de olhos fechados. Se fosse eu, ela, com certeza, iria me culpar e querer que eu apodrecesse na cadeia. Ela fez mal ao meu filho. Mentiu para mim. Disse que Miguel fugiu e que ela não conseguiu segurar a porta do elevador. Eu fiquei chocada quando me enviaram o vídeo em que ela aparece apertando o botão.

“Liguei e perguntei: ‘Por que você deixou meu filho sozinho? Por que apertou o botão da cobertura?’ Ela só dizia que iria provar que não apertou”, continuou.

Para Mirtes, houve uma nítida diferença do tratamento das crianças. “Eu parava o meu serviço para olhar os filhos dela. Ela assumiu o risco quando deixou Miguel sozinho. E se o elevador quebrasse e ele ficasse lá dentro? E se ele fosse para a piscina? Ele estava aprendendo a nadar, mas eu sempre ficava de olho.”

Sobre a carta que Sarí teria escrito para Mirtes, divulgada pela TV Globo, a mãe de Miguel é enfática. “Nem nas minhas mãos chegou. Soube pela imprensa. Na carta ela me pede perdão, mas ela tem que pedir perdão é a Deus.”

Pouco antes de a entrevista terminar, Mirtes lembra dos sonhos que não conseguiu realizar. E dos sonhos que ela e a mãe tinham e que incluíam Miguel.

“A gente estava tentando juntar dinheiro para ir à Bahia em dezembro. Mainha é louca para conhecer a Bahia. Eu não consigo pensar mais em nada. Eu tinha tantos sonhos. Eu tinha um sonho de conhecer Lisboa, uma cidade tão bonita. E eu não vou. Porque Sarí acabou com meus planos de vida. Ela acabou com tudo que eu sonhava.”

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