Por ordem de Bolsonaro, Exército já fez mais cloroquina do que em 10 anos

Instituição produzia 125 mil comprimidos por ano e fez 1,25 milhão após ordem do presidente. Não há eficácia comprovada contra o coronavírus

Raphael Veleda
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Uma das drogas testadas no mundo para tentar combater a Covid-19, a cloroquina ultrapassou o debate médico e virou questão política no Brasil após o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) começar a defender o produto como esperança de cura. Discordâncias sobre a recomendação do uso mais amplo do remédio pelo Sistema Único de Saúde ajudaram a derrubar o ex-ministro da Saúde Henrique Mandetta e colocam Bolsonaro e o novo ocupante do cargo, Nelson Teich, em rota de colisão.

E se ainda não conseguiu interferir diretamente na política ministerial, Bolsonaro usou sua caneta para determinar que o Exército produzisse muita cloroquina: em três semanas após a determinação do presidente, foram feitos 1.250.000 comprimidos, que estão sendo enviados aos estados.

É um aumento de 900% em relação aos 125 mil comprimidos que o Laboratório Químico Farmacêutico do Exército (LQFEx) costumava produzir em um ano inteiro, principalmente para consumo interno contra a malária.

Quando Bolsonaro determinou que a instituição ampliasse a produção, em 21 de abril, a ordem foi acatada imediatamente e, dois dias depois, a instituição começou o plano emergencial e até o dia 14 de abril, último dado que o Exército passou ao Metrópoles, havia feito 1,25 milhão de comprimidos.

Se o ritmo de produção tiver sido mantido, pelo menos mais um milhão de comprimidos podem ter sido produzidos nos 30 dias seguintes, mas o próprio Exército informa que a capacidade total, se necessário, pode chegar a um milhão por semana. Isso se houver matéria-prima, cuja importação é tema de uma negociação entre o Brasil e a Índia.

Embate com o Ministério da Saúde
Bolsonaro quer que o remédio, que o governo também compra da iniciativa privada, seja ministrado a pacientes de Covid-19 desde o início do tratamento. O presidente defende que o Ministério da Saúde recomende e adote o uso mais amplo.

Como não há comprovação científica da eficácia da cloroquina (e de nenhuma outra droga) contra o coronavírus, porém, o Ministério da Saúde, desde os tempos de Mandetta, resiste a cumprir a ordem de Bolsonaro.

A insistência de Bolsonaro no uso da cloroquina aumenta em um momento em que os primeiros estudos científicos mais completos não estão confirmando a eficácia do remédio contra o coronavírus.

Além disso, a droga tem como efeito colateral o aumento do risco de problemas no coração, o que pode ser ainda mais perigoso para pacientes que se tratam em casa e não são monitorados em hospitais.

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Bolsonaro apresenta caixas de cloroquina a apoiadores e à imprensa, em abril de 2020
Em 26 de março de 2020, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) levou uma caixa do medicamento Reuquinol para a reunião com os líderes do G20, que tratou da crise global da pandemia do novo coronavírus
Nos anos anteriores, o HFA não recebeu sequer uma unidade do medicamento
Redes sociais do influencer Renato Spallicci

As possíveis consequências
A ordem de Bolsonaro para ampliar de maneira expressiva a produção de um medicamento pelo Exército traz consigo o risco de um uso questionável de verbas públicas em um momento de emergência – caso a eficácia da cloroquina não seja confirmada e o remédio não sirva para combater o coronavírus.

Para o especialista em direito constitucional e penal Acácio Miranda da Silva Filho, da OMB Advogados, é preciso levar em conta o momento excepcional, mas isso não significa abandonar a racionalidade. “Mesmo agora, os atos do poder público precisam ser minimamente guiados por critérios técnicos e objetivos. Determinar a produção exacerbada de um produto cuja eficácia não é comprovada pode caracterizar crime de responsabilidade”, avalia.

O advogado diz ainda que a edição por Bolsonaro da Medida Provisória nº 966/2020, que isenta de responsabilidade administrativa gestores que cometerem erros sem intenção no combate ao coronavírus, pode ser uma tentativa de respaldar juridicamente “certos exageros”.

Definir o limite do exagero, no entanto, pode ser muito difícil na opinião da pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Vera Monteiro. “O contexto importa para a lei. Em um momento de combate a uma pandemia, medidas que depois se mostraram equivocadas, mas que tinham alguma razoabilidade quando foram tomadas, não devem ser, obrigatoriamente, alvo de punições”, argumenta.

Segundo a professora, mesmo antes da MP nº 966, a legislação previa que o agente público só deveria responder por erros grosseiros ou com dolo. “A Lei nº 12.376/2010 prevê o que veio nessa MP que, para mim, tem mais efeito político do que jurídico”, explica.

Ela conclui afirmando que o fato de a cloroquina ser testada contra o coronavírus pode ser um argumento que isente Bolsonaro de responsabilização mesmo que, no fim, ocorra prejuízo aos cofres públicos. “Mas é preciso, claro, esperar o caso concreto para ver se houve a razoabilidade”, afirma.

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