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Cecília Coimbra: “Política de segurança de Moro recria ditadura”

Fundadora do grupo Tortura Nunca Mais aponta a retomada da ideia de “inimigo interno” que justificou perseguições, mortes e desaparecimentos

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Cecília Coimbra
1 de 1 Cecília Coimbra - Foto: Reprodução

Fundadora do grupo Tortura Nunca Mais, entidade que se tornou referência na luta pelos direitos humanos e pela memória do período da ditadura militar, a historiadora, psicóloga social e professora universitária Cecília Coimbra avalia que um acordo assinado pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, com representantes de países da América do Sul retoma a lógica de perseguição adotada na ditadura militar no Brasil e em outros países da região.

Em entrevista ao Metrópoles, Cecília disse identificar na proposta a chamada doutrina do “inimigo interno”, que orientou toda a política de caça aos opositores nas décadas de 1960 e 1970 no Brasil e na América Latina.

Para ela, o governo de Jair Bolsonaro recria instrumentos que culminaram em articulações como a operação Condor e que dão licença para que militares possam matar opositores, sem que precisem responder por isso. “O que estamos vendo é a recriação dessa doutrina de segurança nacional inspirada pelos Estados Unidos. No fim dos anos 1950 e 1960, toma vulto muito forte esse conceito de inimigo interno dentro da doutrina de segurança nacional. O inimigo não está lá fora. O inimigo está aqui dentro. Esse conceito está sendo trazido pelo Moro agora, está sendo renascido por este governo, porque é uma forma de se fazer toda uma unificação”, critica.

No início de novembro, o ministro assinou com demais autoridades de Justiça e de segurança de países do Mercosul um acordo que permite a continuação de perseguições policiais em território estrangeiro. A proposta será agora analisada pelos presidentes dos países do bloco sul-americano.

A medida permitirá que agentes policiais cruzem a fronteira de outro país durante uma perseguição a criminosos, mesmo sem autorização prévia, até o limite de 1 quilômetro. Hoje, a perseguição não pode ultrapassar a linha de fronteira.

Para Cecília Coimbra, essa prática remonta à mesma atividade que teve seu ápice na Operação Condor, montada por iniciativa do Chile, sob o ditador Augusto Pinochet. A operação também ficou conhecida como Carcará no Brasil.

As ações funcionaram nas décadas de 1970 e 1980, com o conhecimento dos Estados Unidos, por uma aliança político-militar entre os vários regimes ditatoriais da América do Sul, entre eles o Brasil, a Argentina, o Chile, a Bolívia, o Paraguai e o Uruguai. Seu uso foi para coordenar a repressão a opositores dessas ditaduras e eliminar líderes de esquerda instalados nos países do Cone Sul.

“Havia uma ligação estreita entre eles. Não só nas Forças Armadas, mas em todo e qualquer órgão de segurança e informação”, observa a professora, que lembra das trocas de prisioneiros entre os países. “Eu tive um amigo meu preso em 1969 no Uruguai, trocado por Tupamaros que estavam presos no Rio Grande do Sul”, relembra, citando o Movimento de Liberação Nacional – Tupamaros, ou simplesmente Tupamaros, grupo guerrilheiro marxista-leninista uruguaio de guerrilha urbana, que operou nas décadas de 1960 e 1970, antes e durante a ditadura civil-militar no Uruguai.

“A operação Condor é o ápice dessa grande unificação. Mas isso já vinha acontecendo muito em função desse conceito de inimigo interno”, observa Cecília Coimbra, que ainda coordena o Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro, grupo que continua ativo de forma apartidária, sobrevivendo de doações e de apoio de instituições parceiras, entre elas a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), as Avós da Praça de Mayo, da Argentina, e a Anistia Internacional, entre outras.

Excludente de ilicitude
Outra preocupação forte é com a iniciativa de Bolsonaro de enviar ao Congresso um projeto de lei que concede para militares das Forças Armadas e agentes de segurança o chamado excludente de ilicitude, quando esses policiais estiverem em cumprimento de tarefas de Garantia da Lei e da Ordem (GLO).

“Isso, para nós, significa que o militar não vai responder pelas mortes causadas. É o mesmo que o uso dos autos de resistência. Além de recriar a lógica do inimigo interno e da Operação Condor, temos ainda essa coisa poder matar o outro e não responder a nenhum processo”, considerou.

Além da excludente de ilicitude nestas operações, o presidente Bolsonaro também prepara mais ações direcionadas a repressão de movimentos sociais. Um exemplo é a ampliação das GLOs para o campo, para atuarem em reintegração de posse de fazendas invadidas.

A mesma proposta, só que para as polícias, fez parte do projeto anticrime enviado por Moro para Câmara. No entanto, o pacote anticrime elaborado pelo ministro não teve sua tramitação como desejada pelo governo e acabou cuidada por um grupo de trabalho que descartou essa possibilidade. Agora, Moro começou uma articulação com líderes do Congresso, com o apoio da chamada bancada da bala para que a excludente de ilicitude volte a fazer parte do projeto e seja votada.

“Isso é gravíssimo. É continuação do auto de resistência que foi tão utilizado pelo ditadura civil militar no Brasil e será novamente usado principalmente contra os movimentos sociais. Não podemos aceitar”, disse Cecília.

Militância
Cecília Coimbra foi filiada ao PCB, de onde saiu em 1967. Ela também foi aliada do Movimento Revolucionário 8 de outubro (MR-8), grupo responsável pelo sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick, em setembro de 1969. Ela foi ouvida na Comissão Nacional da Verdade, criada no governo da ex-presidente Dilma Rousseff com o objetivo de documentar as memórias da ditadura. Em seu depoimento, identificou pelo menos 11 de seus torturadores.

“Fui levada encapuzada para o andar térreo, para uma sala que ficava à direita, no final de um corredor: a sala de torturas, conhecida como “sala roxa”.  De capuz, tive minhas roupas arrancadas e meu corpo molhado.  Fios foram colocados e senti os choques elétricos: no bico dos seios, vagina, boca, orelha e por todo o corpo.  Gritavam palavrões e impropérios, chutavam-me”, relatou sobre os três meses que ficou presa.

Cecília contou que sua casa, no bairro do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, chegou a servir de abrigo para muitos companheiros que estavam na clandestinidade. “Como tinha vida legal, estava casada e tinha um filho, passei a fornecer infraestrutura e apoio a vários companheiros que já estavam, em 1968 e 1969, na clandestinidade, militando em organizações clandestinas e/ou presos”, relatou.

“Em setembro de 1969, quando do sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick, antes e após a ação, abriguei em minha casa, à Rua Monsenhor Jerônimo, nº 776, aptº 104, no Engenho de Dentro, alguns companheiros que participaram do sequestro: Franklin Martins, José Roberto Spiegner (assassinado em fevereiro de 1970 pela repressão) e Fernando Gabeira, dentre outros”, relatou Cecília.

Após denúncia anônima, ela acabou presa pelas forças de repressão. Em 26/08/1970, à tardinha, o Serviço de Buscas do Dops/RJ invadiu minha residência, onde apreendeu dezenas de livros e alguns documentos. Fui presa e levada, junto com meu marido José Novaes, pelo inspetor Jair Gonçalves da Mota – que parecia chefiar a operação – para a Sede do Dops/RJ, à Rua da Relação”, contou.

“Salvador da pátria”
Apesar do caráter apartidário do grupo que coordena, Cecília aponta como saída política para o que considera um retrocesso o fortalecimentos dos movimentos sociais, combatidos pelos discursos do governo.

“É muito difícil se contrapor a isso. Não existe receita, porque a gente está vendo isso num momento de conservadorismo extremado e de fundamentalismos no planeta. A gente pode mudar, tentar fazer as alianças que a gente puder fazer. O que a esquerda não pode fazer é cair na mesma lógica da direita. É muito perigoso apostar na figura do salvador da pátria, como a direita faz com o Bolsonaro e como alguns estão tentando produzir com o Lula, como se fez com o Chávez (Hugo Chávez ) e com o Evo (Evo Morales)”, defendeu.

“É muito importante que a gente não possa cair nessa visão de que uma pessoa será a salvação. Isso é bem da história oficial e bem típico da lógica norte-americana: o herói. O herói sozinho não irá salvar a nação. É um momento de conservadorismo extremo e é necessário apostar no coletivo, nos movimentos sociais”, considerou.

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