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“Não sou minha deficiência”: alvos de fetiches, mulheres relatam assédio

Entre a perseguição e a fantasia, mulheres com deficiência relatam como lidam com o assédio que envolve seu corpo

atualizado

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Yanka Romão
amor pessoas com deficiência devotees
1 de 1 amor pessoas com deficiência devotees - Foto: Yanka Romão

São Paulo – Alice* estava solteira há poucos meses, no início de 2020, quando decidiu abrir seu perfil no Instagram, em que ela posava descontraidamente com as amigas e a família, sem esconder sua deficiência. Com o passar dos dias, seus seguidores aumentaram de forma exponencial.

“Eu tinha 86 seguidores, e meses depois estava em quase mil. Soube, daí, que meu perfil foi compartilhado entre alguns grupos de homens. No início, eu fiquei muito feliz, tive crushs muito legais, mas vieram as experiências ruins com esses caras que se dizem devotees [grupo de pessoas que mostram atração sexual direcionada a outras com deficiência]”, afirma.

As mensagens inconvenientes envolviam pedidos insistentes por fotos dos seus braços, ou fazendo coisas simples, como segurando um celular. Seus vídeos eram compartilhados por pessoas desconhecidas e surgiram perfis fakes e perfis de fãs, que lhe mandavam conteúdo não solicitado.

“Não foram meses, são anos me olhando no espelho tentando recuperar minha autoestima, entender que eu sou uma mulher bonita, independente. Agora, o medo de ser rejeitada foi substituído pela sensação de ser objetificada”, declara.

Segundo a pesquisa Desfazendo mitos para minimizar o preconceito sobre a sexualidade de pessoas com deficiências, de Ana Cláudia Maia e Paulo Ribeiro, muitos mitos cercam as pessoas com deficiência (PCD), tais como os de que PCDs seriam assexuados ou muito sexuados, não seriam atraentes ou não conseguiriam manter um relacionamento.

Solteira novamente, Alice concorda que sofre com esses mitos. “Nós vivemos em uma sociedade que nunca ignora que eu perdi um braço, mas ignora todas as outras características da minha personalidade que são essenciais para um relacionamento, como a empatia, o humor, os gostos pessoais. Eu não sou só a minha deficiência.”

Bianca*, amiga que Alice fez pelas redes sociais, acredita que a companheira de solteirice deu azar. “É tudo uma questão de insegurança e sorte. Você fica pensando: esse cara gosta de mim ou da minha deficiência?”

Bianca tem 26 anos, é cadeirante desde os 10, e diz que seus melhores relacionamentos foram com homens que se intitulavam devotees, que ela conheceu, inclusive, em aplicativos de relacionamento específicos para pessoas com deficiência (PCD).

Já Alice tem horror à ideia de relacionamento com devotees e saiu de todos os grupos dos quais fazia parte no Facebook. O maior deles contava com cerca de 3 mil participantes, entre pessoas com alguma deficiência e pessoas sem deficiência, mas que queriam investir num relacionamento com PCDs.

Mas o que são devotees?

Marco Antônio Gavério é um cientista social, mestre e doutorando em sociologia pela Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), que estuda as relações da sociedade com pessoas com deficiência e estudou a criação de categorias científicas para explicar os desejos pela deficiência.

Segundo sua dissertação, “devotee é um termo popularizado por relatos pessoais, materiais jornalísticos e filmes para indivíduos que possuem atração por pessoas com deficiência e seus corpos”.

No entanto, o termo é carregado de estigma e necessita de problematização. “O que me intrigou durante a pesquisa foi a ligação do estereótipo da deficiência como ‘tragédia’. Devotees eram ‘patologizados’ porque a deficiência é vista como algo que não pode ser desejada tão facilmente e sem controvérsias, mas para esses indivíduos [os devotees] ela não seria vista como uma ‘tragédia pessoal’, ao contrário, ela se torna uma efetiva possibilidade sexual e corporal”, diz o autor na dissertação Estranha Atração, defendida na Ufscar em 2017.

Até os anos 1990, pesquisadores lidos por Gavério consideravam o “devoteísmo” como um desejo de origem sexológica e era considerado uma prática “patologizada” ou “desviante”. A partir da última década do século 20, a literatura científica passou a fazer relativizações.

“Existe um imaginário social sobre a deficiência que a caracteriza como incapacitante, improdutiva, de estética desprivilegiada. Mas é somente perante essa construção social que o desejo dos devotees se torna ‘anormal’. Ou seja, não é o desejo em si que os desqualifica socialmente, mas um desejo que se relaciona a algo que é tido como sinônimo de fraqueza e, portanto, digno de compaixão e solidariedade e não de desejos erotizados”, afirma o autor na pesquisa.

A diferença entre devoteísmo e assédio

Alice* não é a única a dizer sofrer perseguição por pessoas que se autodenominam devotees. Há inúmeros relatos nas redes sociais de mulheres que reclamam de um assédio que parece condicionado à sua condição corporal. Um deles é da maquiadora Raissa Gorziza.

“Um texto com foto minha foi postado em uma página sobre luta contra o capacitismo e empoderamento de mulheres com deficiência. Começaram a me colocar em grupos em que trocavam minhas fotos, me pediam fotos, se passavam por outras PCDs [pessoas com deficiência].”

Segundo seu relato, as mensagens eram tão insistentes que a levaram a um colapso mental, fazendo com que parasse de gravar vídeos de maquiagem no YouTube (75% da audiência era masculina). “Ser objetificada como mulher é horrível, ser objetificada como mulher com deficiência é um pesadelo.”

Já Bianca*, a cadeirante que conversou com a reportagem anteriormente, se viu empoderada pelo desejo por seu corpo. “Há pessoas que curtem pessoas bem magras, bem gordas, com um cabelo de tal cor. E há pessoas que curtem o meu corpo, e eu não vejo problema nisso. Eu não me sinto presa a uma cadeira, a cadeira, pelo contrário, me permite ser livre, ter uma vida sexual ativa e saudável.”

“Talvez realmente a questão não seja que esses caras curtem mulheres com deficiência. Até porque nem todo mundo que se relaciona com uma PCD é devotee. Talvez o problema maior mesmo seja o machismo estrutural, como alguns homens insistem mesmo após receber um não”, diz Alice.

Depois de ter sido bombardeada por mensagens, Alice preferiu apagar suas redes sociais e dar um tempo nos aplicativos de relacionamento. “Estamos na pandemia, né. Melhor sossegar, por questões maiores.”

Bianca segue mantendo um relacionamento casual com um rapaz “não muito devotee”. “Mas é questão de tempo ele estar totalmente devotado”, diz, rindo. Raíssa deu uma pausa no YouTube, mas criou uma nova conta no Instagram para divulgar seu trabalho como maquiadora.

Segundo dados de 2019 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ao menos 45 milhões de pessoas têm algum tipo de deficiência, quase 25% da população do país.

Recentemente foi sancionada uma lei que incluiu a perseguição nas redes sociais (conhecida como stalking) como uma modalidade de crime. A legislação prevê punição, de até dois anos de prisão, para quem ferir a integridade física, psicológica ou perturbar a liberdade e a privacidade de qualquer pessoa pela internet.

De acordo com o texto, tentativas persistentes de aproximações físicas, recolhimento de informações sobre a vítima, envio repetido de mensagens, bilhetes, e-mails, perseguições e aparições nos locais frequentados pela vítima são alguns dos exemplos que podem ser configurados como crime.

*As entrevistadas pediram para que seus nomes fossem trocados a fim de preservar sua privacidade.

Leia mais: Inclusão: os influencers com deficiência que transformaram a web

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