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Livre das drogas através da fé, ex viciado em crack se torna pastor e evangeliza indígenas

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Livre das drogas através da fé, ex viciado em crack se torna pastor e evangeliza indígenas
Foto:(Ednilson Aguiar/ O Livre)

Aos 47 anos, David Alcides do Carmo, ou pastor David (que ele prefere pronunciado como o nome do famoso rei bíblico) pode ser chamado de exemplo de fé e superação. Livre das drogas há quase nove anos, ele conheceu a dor e as dificuldades do vício, mas se reergueu, reconstruiu sua vida, se tornou pastor e hoje evangeliza na igreja, nas ruas e em aldeias indígenas.

O recomeço ele dá o mérito a Deus, afinal, segundo ele, foi crendo e confiando na fé, sem nenhum tratamento de reabilitação, que David se livrou do vício em crack.

Com 25 anos de experiência em farmácias, ele até chegou a cursar uma faculdade, mas acabou não terminando. Mais para frente, já liberto do vício, se formou em teologia e hoje trabalha em missões cristãs.

Nascido em Nova Aurora, no Paraná, David foi para Rondônia aos quatro anos. Lá conheceu as drogas e viu sua vida ser arruinada por doze anos. Veio para Cuiabá na tentativa de fugir dos males, deixando a família no Norte do país.

Nesse meio tempo conheceu a esposa, Roberta Letícia da Silva do Carmo, 36 anos – que está ao seu lado há 15 anos e sofreu a dor de amar um viciado – e teve uma filha, hoje com 13 anos. Mas nem mesmo o amor à família foi capaz de fazê-lo sair das drogas.

Foi em um momento de luz em volta de várias alucinações, depois de cinco dias usando drogas sem parar e dois dias apagado em uma casa no Bairro CPA, que David pediu a Deus que o livrasse das drogas e em troca prometeu entregar sua vida à fé. Foi ouvido e assim o fez.

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O início

Ele morava em Rondônia, era a segunda vez que via os amigos de escola irem embora. Depois de oito anos os reencontrou, já jovens, com cerca de 20 anos, foi um deles que apresentou as drogas a David.

“Ele me apresentou a maldita droga. A gente experimentou a primeira vez o pó, a cocaína mesmo, mas através dela foi vindo outras. Já bebia, depois veio a maconha, depois maconha misturada com base, até o ponto de ir ao crack. Ai foi o pior momento da minha vida”, lembrou.

O crack foi a destruição do rapaz, trouxe a ele angústias e a depressão. Se sentia desprezado por todos que não entendiam que ele não conseguia se livrar do vício.

“A coisa mais triste é quando você não é compreendido pela pessoa, quando você sabe que é uma pessoa boa, mas os outros não te reconhecem mais, não entendem, evitam você a todo tempo, inclusive a família”, lamentou.

O irmão já não o aceitava, a mãe e o pai ainda lutavam por ele. O pai, no entanto, sentia muita raiva ao ver o filho se acabando. Certo dia, cansado de ver o filho drogado, o pai chegou em casa, o deu dinheiro e o mandou ir embora.

“Ele falou assim: ‘vai embora, eu não aguentaria ver você morto’. Ai eu peguei aquele dinheiro, coloquei na estante e falei pra ele: ‘se por acaso eu precisar, vou pegar esse dinheiro”, disse.

Foto:(Ednilson Aguiar/ O Livre)

Ele nem imaginava que precisaria tão rápido. No mesmo foi para rua junto a um amigo – que morreu em 2009. Eles estavam com muitas drogas, que esconderam no mato. A polícia os abordou e apreendeu a moto que estavam, mas não achou a droga.

O fato foi decisivo para David resolver ir embora. Ele pegou o dinheiro que o pai tinha dado e veio para Cuiabá, buscando fugir das drogas, à época ainda acreditava que o vício não o acompanharia, não foi o que aconteceu.

Passou algum tempo na Capital mato-grossense, mas vendo que o vício continuava o perseguindo, resolveu ir para Vitória (ES).

“Mas a droga está em todo lugar. Chegando lá eu comecei a traficar, 5 kg, 10 kg. Até que eu caí de novo na mão da polícia, ficando preso. E eu fiquei muito depressivo na cadeia, nunca tinha sido preso”, contou.

Ficou na cadeia por pouco tempo, cerca de 40 dias. A polícia sabia que ele traficava para sustentar o vício e queria apenas apreender seu estoque.

Com isso, ele retornou para Rondônia. O vício no crack nessa época já era tão forte que David começou a roubar para sustentá-lo. “Eu fazia todo tipo de roubo, tanto em supermercado, quanto articulava roubo até em banco”, contou.

Sensação

“O crack é tão violento que a pessoa numa fumada já fica viciado. Em uma tragada ele te dá três minutos de sensação, você fica meio alucinado durante três minutos e em cinco minutos você já está ‘naquela sensação’. Mas ele te deixa uma ressaca, uma coisa ruim, uma abstinência e você rouba, faz qualquer coisa para ter o crack novamente”, descreveu David.

Ele afirmou que tentando buscar a sensação do crack começou a beber bebidas fortes, cachaça, whisky, aceitava qualquer coisa que visse outras pessoas bebendo.

“Depois que você usa o crack uma vez, você tem que consumir qualquer outra coisa que te deixa alucinado, você já não consegue ficar normal. É tão terrível que você não consegue parar, só se acabar o dinheiro. E mesmo assim, quando acabava o dinheiro e não tinha mais droga, a gente ficava procurando pelos escuros, por onde nós tínhamos passado, achando que tínhamos perdido alguma faisquinha de droga”, lembrou

Ele passava a noite inteira paranoico por causa do crack, alucinado, como o mesmo narra. E quando saia para andar, passava a noite inteira assim, sem se cansar.

Casamento 

Foi somente em 2003 que conheceu Roberta, que viria a se tornar sua esposa. Ele tentava trabalhar, mas sempre voltava para o vício. Chegou a ter uma farmácia, mas nos finais de semana não parava de se drogar.

As brigas com Roberta eram constantes, ela tentava desistir do relacionamento, mas não conseguia. Aos prantos ela disse à reportagem mal conseguir contar a história. São quinze anos juntos, seis deles convivendo com o vício de David.

Perguntada sobre o porquê de não ter desistido, ela foi enfática: “Amor, muito amor, ficava difícil, porque eu não tinha mais esperança”, contou.

Foto:(Ednilson Aguiar/ O Livre)

À época os dois ainda não eram evangélicos. Ela lutava, o amava e sofria. “Abandonei pai e mãe para viver ao lado dele”, disse em meio a lágrimas.

A sogra pedia que ela não desistisse, que tivesse fé que o filho iria retornar para o caminho certo. Nesse meio tiveram a primeira e única filha do casal.

É possível ver nos olhos de Roberta o sofrimento ao lembrar de tudo que passou, mas, ao mesmo tempo, enquanto sentada de longe vendo a entrevista, ela demonstrava o orgulho de ter visto o marido vencer o vício e a alegria de nunca ter desistido

“Eu tenho 15 anos com ele, vivi os anos da droga. O amor supera tudo na nossa vida e eu só tenho que agradecer a Deus, é só crer e realmente confiar e ele vai fazer. Estamos aí lutando e vencendo os obstáculos da vida. O amor supera tudo”, disse.

Superação

Foram anos tentando abandonar o vício. David já não se reconhecia, se via como um monstro. Tentava reconquistar a família e os amigos, se sentia incapaz, mas lutava.

Depois de passar cinco dias dentro de uma casa no CPA usando drogas, bebendo e até se prostituindo, ele apagou por dois dias. Quando acordou viu um homem armado e temeu por sua vida. Foi nesse momento que decidiu que não queria mais isso para si.

“E eu falei para o Senhor que se ele tivesse misericórdia da minha vida e a restaurasse, mudasse a minha história, eu iria voltar para ele”, disse.

Foto:(Ednilson Aguiar/ O Livre)

Poucos dias depois aconteceria um congresso cristão em Rondônia – onde sua família ainda morava -, que, quando pequeno, David ia todos os anos com o pai. Ele decidiu ir para esse congresso.

Lá encontrou um palestrante que falava justamente sobre restauração de vida e crendo resolveu recomeçar a sua. Fugiu dos amigos usuários que poderiam o influenciar durante muito tempo.

Por onde passava e encontrava cristãos, pedia que as pessoas orassem por ele. “Mesmo passando por esse momento tão horrível da minha vida, eu acreditava que Deus estava me preparando para que no futuro servisse para um amadurecimento, para eu poder ajudar outras pessoas”, contou.

Falta

Sem tratamento de reabilitação, o corpo de David sentia falta da droga. Ele sonhava com a sensação – sonha até hoje – e no começo foi bem difícil.

“Às vezes eu sonhava e até a sensação de loucura da droga estava acontecendo na minha cabeça, mas era algo que eu não queria, então eu caia de joelho, chorava e rezava”.

Ele acredita que foi a fé que o trouxe de volta. “Eu via que a vida estava sendo uma desgraça, por isso que muitas vezes até pensei em me matar, porque não tinha sentido, me perguntava ‘por que você só aborrece as pessoas que te amam?’”.

Quando estava drogado não queria ver ninguém, chegava em casa e tentava ficar isolado. O pai e o irmão o deixavam, mas a mãe, que nunca desistiu do filho, entrava no quarto e falava com ele.

“Eu estava muito louco deitado na cama, ela batia nas minhas costas e falava: ‘meu filho você me ama? Você me ama?’ E eu falava: ‘ah, mamãe, a senhora sabe que eu te amo’. E ela falava: ‘então abandona isso, meu filho’”, lembrou.

Ele afirmou que isso o ajudou muito, pois sempre que sentia muita falta da droga ouvia a voz da mãe perguntando se ele a amava.

“Aí eu me sentia um miserável, um lixo, achava que não valia nem a pena viver mais”, contou.

Foto:(Ednilson Aguiar/ O Livre)

Para David, a maioria das famílias não sabem lidar com o filho usuário e acabam o expulsando de casa, ou usando palavras que os machucam. Porém, o segredo para livrar algum familiar do vício é o amor.

“A palavra-chave é o amor, mesmo quando causa raiva e desgosto, o que salva é o amor, levar a palavra de carinho, para poder conseguir restaurar as pessoas. Porque depois que a droga não estiver na mente, ele vai começar a refletir naquilo que as pessoas falaram para ele. Se falaram só coisas ruins, ele vai ficar ainda mais deserto, cruel e irado, se falaram coisas boas ele vai entender que alguém o ama e vai lutar para abandonar o vício”.

Ele conta que em seus trabalhos nas ruas depois de abandonar as drogas, encontrou várias pessoas que só precisavam de um abraço e que ao receber choravam, demonstrando que não tinham mais ninguém e só precisavam de carinho.

Pós libertação

Depois que conseguiu se libertar do vício, David cumpriu sua promessa e entregou sua vida a trabalhos missionários. Um deles é realizado em seu bairro, o Tancredo Neves, em que ele ajuda cerca de 30 crianças através de um projeto de futebol.

“Quando eu cheguei aqui nesse bairro [Tancredo Neves], era infestado de muita droga. Eu não podia fazer nada para aquelas pessoas que já estavam adultas, formadas, então pensei em fazer pelas crianças”, contou.

Além disso, por três anos, o pastor também distribuiu café da manhã para viciados que estão em situação de rua, levando 15 litros de leite e 200 pães por ação. Nas horas vagas ele trabalha como motorista de aplicativo na Capital.

Atualmente ele também promove trabalhos em Rondônia, lugar em que cresceu. Como o pai era obreiro e já está com 92 anos, ele assumiu as missões de evangelização. Lá ele dá palestras sobre drogas, utilizando seu testemunho de vida, e faz pregações.

No Estado ele também visita aldeias indígenas, que estão na divisão de Rondônia com Guarajá-Mirim. Inclusive nessa quarta-feira (18), ele retornou para lá.

O processo de aceitação dos indígenas, segundo David, é bem difícil. A princípio um missionário chamado Eduardo Luz é a única pessoa a ter contato com eles.

“Primeiramente passam de avião por cima das aldeias, lançam alimentos, roupas. Depois de muito tempo vai mandando alguns sinais para eles, até conseguir descer nesses ambientes para conseguir fazer um trabalho. É tudo muito vagaroso com eles, com muito cuidado, porque eles ainda não têm contato com o homem branco”, contou David.

As missões que David costuma fazer são com índios já evangelizados. No local eles já tem uma igreja e contam com cerca de 30 índios que conseguem transmitir a fé cristã para outras aldeias de Rondônia.

“Nós pegamos as pessoas que já estão falando a mesma língua, transmitimos para eles a palavra e eles vão levando aos demais que ainda não conseguimos falar”, disse.

Com os pais idosos, David disse que sua grande alegria é eles estarem vivos vendo sua vitória sobre as drogas. “Hoje levo eles para ver minhas palestras. É o melhor momento da minha vida”.

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