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STF discute papel da Justiça Militar no julgamento dos atos de 8/1

Especialistas avaliam que atos golpistas incendiaram os alertas sobre os risco de corporativismo na responsabilização de militares

atualizado

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Hugo Barreto/Metrópoles
Superior Tribunal Militar
1 de 1 Superior Tribunal Militar - Foto: Hugo Barreto/Metrópoles

A competência da Justiça Militar esteve no alto das discussões do Supremo Tribunal Federal (STF) nos últimos dias. Em uma frente, a Corte retomou e adiou pela quarta vez o julgamento da ação que analisa quem deve julgar crimes cometidos por militares em operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) e de combate ao crime. Em outra vertente, o ministro Alexandre de Moraes decidiu que o STF será o responsável por julgar militares envolvidos nos atos antidemocráticos de 8 de janeiro.

Embora distintas, ambas as ações tratam de diferenciar julgamentos civis e militares, sem extrapolar funções. O tema é complexo, pois é necessário haver uma balança que garanta direitos, sem ampliar ou sobrecarregar as instâncias. Apesar de apresentarem abrangências diferentes, os dois debates recentes convergem para um ponto central: os limites dos julgamentos da Justiça Militar da União (JMU).

Ao decidir que o STF julgaria os militares investigados pelos atos de 8 de janeiro, por exemplo, Moraes sofreu com questionamentos e até uma enxurrada de fake news nas redes. Os apontamentos foram de que a determinação envolveria um suposto conflito de competências com o Superior Tribunal Militar (STM).

Segundo a Constituição, o Superior Tribunal Militar (STM) é o órgão responsável por processar e julgar os crimes militares previstos no Código Penal Militar brasileiro. A Corte Militar tem “como principais jurisdicionados os militares das Forças Armadas e, em certos casos, até civis”, diz o texto institucional.

Assim, no caso dos militares acusados de envolvimento nos atos golpistas de 8 de janeiro – quando manifestantes bolsonaristas invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes, em Brasília, com o objetivo de promover um golpe de Estado –, não se trata de um crime militar, o que não justificaria o envio dos processos ao STM, conforme o entendimento de Moraes.

Entenda a decisão sobre o 8/1

A decisão tomada por Alexandre de Moraes ocorre dentro do Inquérito 4.923, no qual o ministro é relator. É nesse inquérito que são apuradas autorias de crimes, omissões ou condutas irregulares de autoridades como o governador afastado do DF, Ibaneis Rocha (MDB), e o ex-secretário de Segurança do DF Anderson Torres.

Moraes atendeu a requerimento da Polícia Federal (PF) de autorização para investigar autoria e materialidade de eventuais crimes cometidos por integrantes das Forças Armadas e policiais militares relacionados aos atentados contra a democracia, que culminaram com os atos criminosos e terroristas em questão.

A PF informou que, devido à deflagração da 5º fase da Operação Lesa Pátria, os PMs ouvidos indicaram possível participação ou omissão dos militares do Exército Brasileiro, responsáveis pelo Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e pelo Batalhão da Guarda Presidencial. Por isso, a apuração dos delitos envolve a autorização para investigar militares, especificamente nesse caso.

Moraes ressaltou que, nos termos do art. 124, caput, da Constituição Federal, à Justiça Militar da União compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei.

“O Código Penal Militar não tutela a pessoa do militar, mas sim a dignidade da própria instituição das Forças Armadas competência ad institutionem, conforme pacificamente decidido por esta Suprema Corte ao definir que a Justiça Militar não julga ‘crimes de militares’, mas sim ‘crimes militares'”, prosseguiu o magistrado.

Assim, pela decisão do ministro, cabe ao STF investigar os participantes dos atos de 8 de janeiro, pois os inquéritos na Corte investigam os crimes previstos nos artigos 2º, 3º, 5º e 6º (atos terroristas, inclusive preparatórios) da Lei 13.260/16, e nos artigos 147 (ameaça), 147-A, § 1º, III, (perseguição), 163 (dano), art. 286 (incitação ao crime), art. 250, § 1 º, inciso I, alínea ”b” (incêndio majorado), 288, parágrafo único (associação criminosa armada), 359-L (abolição violenta do Estado Democrático de Direito), 359-M (golpe de Estado), todos do Código Penal, não distingue servidores públicos civis ou militares, sejam das Forças Armadas, sejam dos Estados (policiais militares).

“Acordo de não interferência”

O cientista político Rodrigo Lentz avalia que a decisão do ministro é “histórica”, porque trata-se do rompimento de um acordo velado de “não interferência”.

“Pela primeira vez depois de 1988, [a decisão] sinaliza que o Judiciário civil finalmente assumiu sua responsabilidade constitucional de julgar a conduta de militares no exercício da profissão. Depois da ditadura, com a lei de anistia de 1979, o Judiciário civil tem se esquivado dessa competência por razões políticas”, frisa Lentz.

O especialista defende ainda que a conjuntura permitiria uma espécie de “imunidade política”, rompida com os atos terroristas e antidemocráticos de 8 de janeiro. Segundo ele, a invasão incitou o Judiciário a agir, para garantir a estabilidade e sobrevivência do poder democrático, ao responsabilizar todos os envolvidos.

No caso da ampliação anterior das competências do tribunal militar, Lentz avalia que “trata-se de um desenho tipicamente autoritário”.

“A ampliação da competência da Justiça Militar, naquela ocasião, se deu em um cenário de legitimação do militarismo na política. Porém, é um cenário que só poderá ser acionado caso os civis chamem as Forças Armadas para ampliar sua atuação direta na segurança pública. Também pode ser visto como um aceno à autonomia militar”, comenta Lentz.

Competência da Justiça Militar

Ao contrário do caso das invasões de 8 de janeiro, que trata de uma situação específica, o julgamento adiado na última quarta-feira (8/3), pelo Supremo, avalia de forma mais abrangente a competência da JMU.

Ele responde a uma ação protocolada pela Procuradoria Geral da República (PGR), em 2013, que questiona um trecho da Lei Complementar 97/1999. A norma dispõe sobre a a atuação subsidiária das Forças Armadas em operações para GLO e de combate ao crime.

A PGR sustenta, na ação, que o dispositivo ampliou a competência da Justiça Militar para julgamento de crimes que não estão diretamente ligados às funções típicas das Forças Armadas, como operações de GLO, combate ao crime e para garantir a segurança das eleições.

Os defensores do modelo argumentam que o conhecimento especializados sobre a vida e atuação militares são imprescindíveis, e que os profissionais da área precisam de garantias no cumprimento da profissão. As críticas, por outro lado, permeiam o incentivo ao corporativismo, violações e arbitrariedade e excesso de autonomia política aos militares.

Divergências

Entre os magistrados, o tema também é motivo de divergências. O caso começou a ser julgado em 2018, quando o ministro Marco Aurélio Mello, hoje aposentado, votou para que a Justiça Militar continue julgando casos de GLO. Ele considerou que não houve aumento das competências da Corte militar.

Na ocasião, os ministros Alexandre de Moraes, Roberto Barroso, Luiz Fux, Dias Toffoli seguiram o voto do relator. Os ministros Edson Fachin e Ricardo Lewandowski já tinham divergido do relator na ocasião. Eles consideram que a Justiça Militar não tem competência para atuar nesses casos. Para os ministros, a norma estabelece uma “espécie de foro privilegiado para os militares”.

Na quarta-feira (8/3), Lewandowski foi o último a ler o voto. Segundo o ministro, a segurança pública é uma atividade constitucionalmente atribuída às polícias e só é exercida por integrantes das Forças Armadas como cooperação com as autoridades civis. Dessa forma, não seria possível falar em delito cometido no exercício do cargo, de forma a definir a competência da Justiça Militar.

O julgamento foi adiado, pela quarta vez, e ainda não há previsão para que os ministros voltem à apreciação do tema. Ainda faltam os votos das ministros Gilmar Mendes, Nunes Marques, Rosa Weber, Cármen Lúcia e André Mendonça.

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