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Moraes: “É preciso dilatar o prazo para criar juiz de garantias”

Idealizador do pacote anticrime sancionado por Bolsonaro, ministro diz que andamento de casos como a Lava Jato não será prejudicado

atualizado

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Daniel Ferreira/Metrópoles
Sabatina Alexandre de Moraes no Senado Federal – Brasília(DF), 21/02/2017
1 de 1 Sabatina Alexandre de Moraes no Senado Federal – Brasília(DF), 21/02/2017 - Foto: Daniel Ferreira/Metrópoles

Idealizador do pacote anticrime sancionado por Bolsonaro, o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes celebrou a aprovação da lei e rebateu críticas sobre a criação do “juiz de garantias”, responsável pelo controle da investigação penal, mas não pela sentença contra o investigado

A nova figura provocou divergências dentro e fora dos tribunais superiores. Enquanto o decano da Corte, Celso de Mello, considera o juiz de garantias uma ‘conquista da cidadania’, duas associações que representam a magistratura pedem ao Supremo a suspensão do novo cargo. Nos bastidores, o caso é tratado como um ‘Frankenstein’, que ganhará vida própria nos próximos 30 dias.

“Há muitas críticas sobre o juiz de garantia, sem, contudo, se procurar entender do que se trata”, afirma Alexandre de Moraes ao Estadão. “Me parece que afirmar que a divisão de competências atrapalhará as investigações é considerar que um juiz pode ser melhor que o outro; ou seja, é fazer um juízo valorativo entre magistrados.”

O ministro destaca que, diferentemente do que se afirma, a lei anticrime não prejudica o andamento de casos como a Lava Jato ou as investigações contra o ex-assessor parlamentar Fabrício Queiroz. “O pacote anticrime fortaleceu o Ministério Público, respeitando integralmente o sistema acusatório consagrado na Constituição Federal”, disse Alexandre de Moraes.

Leia a entrevista:

ESTADÃO: Qual o ponto o sr. reputa como o mais importante e de imediata colocação em prática do pacote anticrime?
ALEXANDRE DE MORAES: O pacote anticrime é resultante de um grande trabalho conjunto do Congresso Nacional a partir de propostas oferecidas por uma Comissão de Juristas, a qual tive a honra de presidir, pelo ministro Sérgio Moro, em nome do Executivo, e pelo grupo de trabalho da Câmara dos Deputados, presidido pela deputada Margarete Coelho. As propostas da comissão e do ministro Sérgio Moro foram debatidas e, em sua grande maioria, acolhidas. Outras importantes sugestões apresentadas pelos parlamentares foram aprovadas pelo GT e incorporadas ao texto final pelo Congresso Nacional.

O mais importante do pacote anticrime aprovado será a mudança de mentalidade, com o fortalecimento da Justiça Criminal no Brasil, tanto do ponto de vista da Segurança Pública, quando da questão penitenciária, com a priorização e previsão de fortes instrumentos para o efetivo combate à criminalidade organizada e aos crimes violentos, com maiores sanções, maior tempo de cumprimento de pena (40 anos), necessidade de 50% do cumprimento da pena para eventuais progressões, para os primários condenados em crimes hediondos, chefia de organização criminosa e milícias privadas; chegando a 70% do cumprimento da pena se for reincidente e houver resultado morte no crime hediondo.

Além disso, foi estabelecido um rígido regime disciplinar para a criminalidade organizada, principalmente, para seus líderes.

ESTADÃO: Como será possível a priorização sobre crimes graves? De que forma o grande volume de ocorrências será solucionado por transação?
ALEXANDRE DE MORAES: Desde meus tempos como Promotor de Justiça, sempre repeti que o sistema penal brasileiro “prende muito, mas prende mal”. Porque, tradicionalmente, a mesma estrutura policial e judicial é compartilhada de forma idêntica para, por exemplo, processos de roubo a mão armada com fuzil e tentativa de furto simples de objeto de pequeno valor. Há inquérito, denúncia, processo com audiências, sentença, recurso para o Tribunal, depois para os Tribunais Superiores, inúmeros habeas corpus. Após anos e anos de processo, se houvesse condenação a regime fechado, em ambos os casos o condenado poderia progredir após o cumprimento de 1/6 da pena. Não é razoável, nem tampouco eficaz do ponto de vista de combate a criminalidade você não priorizar os delitos mais graves.

Com as novas alterações, na tentativa de furto simples de objeto de pequeno valor, imediatamente poderá ocorrer a transação e na mesma semana do crime, seu autor estará prestando serviços em hospitais públicos, por exemplo. Será rapidamente aplicada uma sanção proporcional ao delito, que se desrespeitada acarretará a prisão. Toda sociedade sentirá a efetividade imediata da Justiça Criminal.

Com isso, será possível redirecionar a maior parte da estrutura das Polícias, MP e Judiciário para combater a criminalidade organizada e os crimes realmente graves e reduzir os inúmeros roubos a mão armada, inclusive com fuzis. Esses crimes passaram a ser hediondos, e obrigarão o condenado a cumprir no mínimo 50% da pena, se for primário, ou 60%, se reincidente, para pleitear progressão de regime. Hoje, bastava para o roubo a mão armada o cumprimento de 1/6. E o cumprimento dessa pena será em regime disciplinar rigoroso. Ou seja, houve, finalmente, uma priorização no combate a criminalidade organizada.

ESTADÃO: Como se dará a reestruturação da Justiça Criminal e o combate à criminalidade organizada de forma regionalizada?
ALEXANDRE DE MORAES: A previsão de transação penal para os delitos praticados sem violência ou grave ameaça, desde que presentes vários requisitos, possibilitará rápida solução de mais de 65% dos crimes, com a imediata aplicação de uma sanção. Sem a necessidade de inquérito policial, processo judicial em primeira e segunda instâncias, inúmeros recursos e habeas corpus, chegaremos ao mesmo resultado em pouquíssimo tempo, liberando toda essa estrutura hoje existente para o combate a criminalidade organizada e aos crimes graves.

A macro criminalidade como os tráficos de drogas e armas e seus crimes conexos, como homicídios, latrocínios, roubos, extorsões, entre outros, não tem abrangência meramente municipal, mas sim regional, estadual, interestadual e inúmeras vezes internacional. Com a priorização do combate a esse tipo de criminalidade e a destinação da infraestrutura e recursos humanos hoje dissipados na estrutura geral será possível criar Varas Judiciais Colegiadas que, além de garantirem maior segurança aos magistrados no combate às facções criminosas, atuarão de forma regionalizada, com uma visão maior do fenômeno criminal, permitindo interligação de dados entre essas varas, com a criação de um sistema de inteligência judicial, com dados de todos os inquéritos e processos envolvendo a criminalidade organizada no País.

ESTADÃO: Na prática, como se dará o endurecimento criminal em relação às organizações criminosas no âmbito dos processos e cumprimento de penas?
ALEXANDRE DE MORAES: As grandes organizações criminosas não são responsáveis somente pelos tráficos de drogas e de armas, por exemplo. A grande maioria dos crimes graves como homicídios, latrocínios, roubos a mão armada, entre outros são praticados por seus membros, em verdadeira conexão com a atuação das organizações.

Sempre que a polícia apreende toneladas de drogas ou inúmeros fuzis, pouco tempo depois há uma roubo violento a banco, a carros blindados, a empresas que guardam valores ou mesmo vários caixas eletrônicos são explodidos por criminosos fortemente armados. É a maneira das organizações criminosas se refinanciarem. Sem contar os inúmeros homicídios praticados por seus membros. A nova legislação não só equiparou o roubo a mão armada e o furto com explosivos aos crimes hediondos, como também estabeleceu que em todos esses casos haverá necessidade de cumprimento de 50 a 70% da pena para pleitear eventual progressão, vedando-se o livramento condicional, no caso de morte da vítima.

Essa pena deverá ser cumprida em regime disciplinar extremamente rígido e sem limitação de tempo. Além disso, o prazo total de efetivo cumprimento da pena passou de 30 para 40 anos.

ESTADÃO: O juiz de garantias acirra o debate sobre o pacote anticrime. O ministro Celso de Mello diz que é ‘uma conquista da cidadania’. Procuradores alegam que o juiz de garantias trava investigações como a Lava Jato. Qual a sua posição com relação ao juiz de garantias?
ALEXANDRE DE MORAES: Como ressaltei, o pacote anticrime é resultante de um grande trabalho conjunto do Congresso Nacional, com importantes sugestões apresentadas pelos parlamentares que foram incorporadas ao texto final pelo Congresso Nacional, entre elas, a criação do juiz de garantias. Trata-se, portanto, de uma legítima opção feita pelo Congresso Nacional e sancionada pelo Presidente da República, que, de modo algum, desde que bem implementada afetará o combate à criminalidade organizada e a corrupção.

Há muitas críticas sobre o “juiz de garantias”, sem, contudo, se procurar entender do que se trata.

Haverá, como em vários países, uma divisão de competências entre juízes. Um atuará durante a fase de investigação e outro, durante o processo e julgamento. Ora, ambos serão juízes independentes e com todas as garantias da magistratura.

Me parece que afirmar que a divisão de competências atrapalhará as investigações é considerar que um juiz pode ser melhor que o outro; ou seja, é fazer um juízo valorativo entre magistrados. E mais, um juízo valorativo futuro, sem saber quem atuará.

ESTADÃO: Juízes alertam que 40% das comarcas contam apenas um juiz. Como será o juizado de garantias nessas áreas?
ALEXANDRE DE MORAES: Logicamente, haverá necessidade de uma reestruturação organizacional do Judiciário. Mas isso não só é possível, como muito menos problemático do que alguns apontam. Tome-se o exemplo da maior comarca do Brasil, o município de São Paulo, onde algo extremamente semelhante ao “juiz de garantia” existe há 40 anos.

Em São Paulo, há 1 juíza coordenadora e 12 juízes, no Dipo (Departamento de Inquéritos Policiais), que tem competência para atuar na fase de investigação criminal nos inquéritos policiais e procedimentos de investigação do Ministério Público. São esses juízes que analisam todos os pedidos cautelares (prisões, buscas e apreensão, interceptações telefônicas), além de realizarem todas as audiências de custódia da Capital São Paulo. Somente após o término da investigação criminal e com o oferecimento da denúncia é que o processo será distribuído para um dos 67 magistrados das 32 Varas Criminais e das 2 Varas especializadas em crimes tributários, organização criminosa e lavagem de bens.

Em outras palavras, há 40 anos há essa divisão de competência entre magistrados, onde, atualmente, 13 atuam na fase de investigação e 67 no processo e julgamento. Os números mostram que, em novembro/19, estavam em andamento no Dipo, 84.490 inquéritos e investigações criminais, tendo sido arquivados 4180, além de realizadas 1518 audiências e proferidas 4681 decisões. Nunca se alegou prejuízo a investigações.

É possível replicar esse modelo para o restante do Estado de São Paulo e mesmo para os demais Estados da federação e para a Justiça Federal, cada qual com suas peculiaridades, regionalizando os “juízos de garantia”.

Obviamente, não é razoável e nem necessário criar para cada Comarca com vara única, outro cargo para um juiz de garantias. Me parece que a regionalização é o segredo, não só para o combate a criminalidade organizada, mas também para a rápida e eficiente implantação do juízo de garantia.

Tomo, novamente, São Paulo como exemplo. Há 10 regiões administrativas judiciárias, cada uma com um Deecrim (Departamento de Execução Criminal). Junto à esses podem ser criados 10 “juízos de garantia” que terão competência em todas as comarcas da região e atuarão rapidamente no processo digital, como já é feito na questão de execução penal. Levando-se em conta os números da Capital SP e do Interior do Estado, é provável que que nesses 10 “juízos de garantia” regionalizados sejam necessários em torno de 25 a 30 magistrados.

ESTADÃO: Nos bastidores dos Tribunais Superiores o pacote é chamado de “frankenstein jurídico”.
ALEXANDRE DE MORAES: Toda e qualquer alteração legislativa está sujeita a críticas e aperfeiçoamento. Mas, certamente, quando analisarem melhor chegarão a conclusão que o pacote anticrime aprovado será um grande avanço parar a Justiça Criminal brasileira, por priorizar o combate a criminalidade organizada e aos crimes violentos. Independentemente, por óbvio, de estar sujeito a melhorias.

ESTADÃO: Também foi vetado o dispositivo que aumentava a pena do crime de homicídio quando o criminoso usa, na ação, arma de fogo de uso restrito ou proibido. A pena atual é de 6 a 20 anos. Pela proposta, passaria para 12 a 30 anos.
ALEXANDRE DE MORAES: Lendo as razões do veto, verifiquei que o presidente da República entendeu que esse novo dispositivo poderia ser aplicado a policiais que, eventualmente, praticassem homicídios com armas da corporação. Logicamente, não haveria essa aplicação, pois para ele a utilização daquela arma é permitida. Essa proposta feita pela Comissão de Juristas é importante, pois responsabiliza mais fortemente a criminalidade organizada ligada ao tráfico de armas, de maneira a aplicar penas mais severas.

ESTADÃO: O sr. celebrou que a aprovação da lei iria ‘revolucionar o combate ao crime organizado’, mas há questionamentos sobre como a legislação vai afetar a Lava Jato e outras investigações, como o caso Queiroz. Como encara essas críticas?
ALEXANDRE DE MORAES: As alterações da nova legislação estão, obviamente, sujeitas as críticas e aperfeiçoamentos, porém não me parece que nenhum dispositivo legal traga prejuízo ao combate efetivo da corrupção e da criminalidade organizada.

O pacote anticrime fortaleceu o Ministério Público, respeitando integralmente o sistema acusatório consagrado na CF. Além de ampliar as hipóteses de transação penal oferecidas pelo MP, no caso de arquivamento do inquérito não haverá mais necessidade de se enviar ao controle do Poder Judiciário. O controle será feito pelos órgãos superiores do próprio MP.

ESTADÃO: As mudanças são possíveis até 23 de janeiro? Será possível dilatar esse prazo?
ALEXANDRE DE MORAES: Principalmente em relação ao juízo de garantias, me parece ser necessário uma dilação de prazo, para que seja instalado de maneira consciente, razoável e nacionalmente.

ESTADÃO: O Conselho Nacional de Justiça, liderado pelo ministro Dias Toffoli, criou um grupo de trabalho para discutir a legislação anticrime e apresentar uma proposta de ato normativo. O que o sr. espera do estudo?
ALEXANDRE DE MORAES: Uma ótima iniciativa do ministro Dias Toffoli, que auxiliará, por meio do CNJ, a concreta instalação dos juízes de garantia, respeitadas as peculiaridades de cada estado da federação e a autonomia do Poder Judiciário.

ESTADÃO: O veto às sanções a agentes públicos no caso de enriquecimento ilícito não esvazia o pacote anticrime? O trecho vetado criava a possibilidade de o Ministério Público, nestes casos, celebrar acordo de não persecução cível e estabelecia os critérios para o acordo, como o integral ressarcimento do dano e o pagamento de multa.
ALEXANDRE DE MORAES: Essa proposta surgiu no Congresso Nacional e vem ao encontro do que o Ministério Público estava pleiteando, ou seja, a possibilidade de acordo de não persecução cível nas ações de improbidade. O veto presidencial foi somente no sentido de ampliar a possibilidade de acordo também com outros legitimados para a propositura da ação de improbidade, como por exemplo, a Fazenda Pública.

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