Famílias lutam para proteger nas redes sociais a memória de parentes que já morreram
Publicações com fake news ou ofensas à memória dos mortos são consideradas dano moral contra os familiares das vítimas, explica especialista
atualizado
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Na terça-feira 1º/12, a Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor do Estado de São Paulo (Procon – SP) multou em R$ 1.134,85 o restaurante Primata Parrilla por causa de mensagens desrespeitosas publicadas nas redes sociais do estabelecimento.
“Filho a gente não cria ‘pra’ nós. Cria ‘pra’ jogar no mundo. Alexandre Nardoni” e “O cão é o melhor amigo do homem. Goleiro Bruno” foram algumas das frases publicadas no Instagram do restaurante no fim de novembro.
As mensagens fazem referência a dois casos de crimes brutais que chocaram o país. Em 2010, o goleiro Bruno Fernandes das Dores de Souza assassinou a modelo Eliza Samúdio, esquartejou o corpo dela e o jogou para que fosse comido por cachorros.
O outro crime citado nas mensagens é o assassinato de Isabella Nardoni, que foi jogada pela janela de um prédio pelo pai, Alexandre Nardoni, e pela madrasta, Anna Carolina Jatobá, quando tinha apenas 5 anos de idade. O caso ocorreu em 2008.
As publicações ofensivas levantam o seguinte questionamento: quem compartilha ou publica esse tipo de mensagem pode ser responsabilizado judicialmente por ofender quem já faleceu? A resposta é sim.

Reprodução/Instagram

Reprodução/Instagram
O ato de publicar ofensas ou notícias falsas sobre pessoas falecidas pode magoar a família das vítimas e é considerado dano moral.
Paulo Rená, especialista em direito, inovação e tecnologia e professor do UniCeub, explica que esses casos seguem o conceito de dano moral em ricochete, ou seja, quando o falecido é ofendido e, consequentemente, os familiares são atingidos.
“Os familiares não são ofendidos de forma direta, mas são afetados patrimonialmente e moralmente pela desconsideração”, explica.
Mesmo sem ter citado o nome das vítimas, como é o caso do restaurante Primata Parrilla, quem faz esse tipo de publicação deve ser responsabilizado. “Ainda que não haja menção específica à pessoa, afeta-se a memória do indivíduo”, explica Paulo.

Isabella Nardoni

Ana Carolina Oliveira e a filha, Isabella Nardoni

Divulgação

Mãe de Eliza Samúdio, Sônia Moura Reprodução
As famílias de Isabella Nardoni e Eliza Samúdio, como as de outras pessoas falecidas que foram ofendidas na internet, podem procurar o Ministério Público para denunciar o caso ou prestar queixa em uma delegacia.
No entanto, o constrangimento passado pode fazer com que as vítimas deixem de buscar as autoridades a fim de tomar as medidas adequadas.
“Tem uma questão que é muito sensível. Eventualmente, a família também fica sensibilizada, sem saber se quer levar para frente ou não”, pontua Paulo. A reportagem não conseguiu contato com a mãe de Eliza Samúdio, Sônia Silva Moraes, nem com a mãe de Isabella Nardoni, Ana Carolina Oliveira.
Além disso, Paulo ressalta que os próprios autores de comentários ofensivos acabam ganhando visibilidade na internet por causa da quantidade de cliques e comentários que as publicações recebem. Os posts ofensivos do Primata Parrilla, por exemplo, têm centenas de curtidas.
“Quem tem feito essas ‘piadas’ tem o intuito de se promover por meio da polêmica. Acontece esse fenômeno da marca: você acaba sabendo da existência desse restaurante. Muita gente vai acabar relevando a questão moral. Acaba sendo benéfico para o restaurante”, explica.
Em nota, o restaurante Primata Parrilla disse que fez uma “piada”. A empresa pediu desculpas em publicação no Instagram, mas disse que “as únicas pessoas com legitimidade de se ofenderem com tudo isso são a Dona Sônia e o Bruninho”, mãe e filho de Eliza Samúdio.
O restaurante informou que Sônia teria entrado em contato com a empresa de forma “muito cordial e educada”. A página excluiu a publicação que fazia referência à morte de Eliza Samúdio, mas manteve o post sobre o caso de Isabella Nardoni.
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Redes Sociais
Esse tipo de publicação demonstra a importância do debate sobre a preservação da memória de falecidos na internet e nas redes sociais.
A SaferNet, associação civil de direito privado que promove e defende os direitos humanos na internet do Brasil e atua em parceria com o Ministério Público Federal, não tem dados específicos sobre publicações que violam ou ferem a memória de falecidos.
No entanto, o presidente da organização, Thiago Tavares Nunes de Oliveira, acredita que esse tipo de postagem é uma “agressão à sociedade”. Assim como o professor Paulo, Thiago ressalta que a responsabilização jurídica depende da família das vítimas, mas que o tipo de publicação é “antiética”.
“São crimes que geraram um grande clamor social. É um comportamento antiético que afronta princípios básicos de dignidade.” A associação informa que, em 14 anos, já registrou 30.389 atendimentos a vítimas de crimes na internet e 4.134.808 denúncias.
O post sobre o caso de Isabella Nardoni não foi removido do Instagram, apenas censurado com alerta de “conteúdo delicado”. Essa censura é realizada após denúncias de usuários, mas a postagem ainda pode ser visualizada por quem desejar ver a imagem, mesmo com o alerta.

Para o professor Paulo, as plataformas precisam ser mais “transparentes” e deixar evidente para o público a razão de não apagar esse tipo de conteúdo.
“Demora até que todo mundo entenda por que uma postagem é removida e por que tantas outras não são. Às vezes um perfil é deletado por mostrar um mamilo feminino e um outro publica imagens de uma decapitação e fica ativo”, explica.
Questionado pelo Metrópoles, o Instagram não comentou o caso do restaurante que ofendeu a memória de Eliza Samúdio e Isabella Nardoni.
No entanto, a plataforma explicou as diretrizes e recomendações que assume. A tela de “conteúdo sensível” aparece para “ajudar as pessoas a evitar publicações que não gostariam de ver”, explica a empresa.
Segundo as diretrizes do Instagram, são bloqueadas as publicações que contêm nudez, apoio ou exaltação ao terrorismo, ao crime organizado ou a grupos de ódio.
Também são proibidas postagens com oferta de serviços sexuais, compra ou venda de armas de fogo, álcool, produtos de tabaco entre pessoas físicas e compra ou venda de drogas, animais ou pessoas físicas.
Além disso, a página afirma que “o incentivo à violência ou o ataque a alguém com base em raça, etnia, nacionalidade, sexo, gênero, identidade de gênero, orientação sexual, religião, deficiências ou doenças nunca é aceitável”.
O caso Marielle Franco
Um dos casos de maior visibilidade sobre ofensas à memória de falecidos publicadas nas redes sociais é o da vereadora Marielle Franco, eleita em 2016 no Rio de Janeiro e assassinada em 2018.
Nas primeiras semanas após a morte de Marielle, as redes sociais foram marcadas por uma série de publicações com ofensas e fake news sobre a vereadora. De textos falsos sobre um suposto envolvimento de Marielle com traficantes a ilustrações que mostram a cabeça da vereadora decapitada, foram muitas as postagens ofensivas.
Anielle Franco, jornalista, professora, irmã da vereadora e criadora do Instituto Marielle Franco, diz que a organização ainda não conseguiu numerar a quantidade de fake news e posts ofensivos à memória de Marielle.
“É tudo muito ruim. Muito duro ver pessoas espalhando mentiras sobre minha irmã e ela não estar aqui para se defender. Um [post] muito duro é o que diz que ela foi eleita com dinheiro do tráfico. Marielle fez uma campanha linda, com voluntárias e financiamento coletivo. As pessoas falam o que querem e não estão nem aí para a verdade”, conta Anielle.

Marielle Franco e sua irmã Anielle Franco, ministra da Igualdade Racial do governo Lula Reprodução/Redes sociais

Monica Benizio Reprodução/Redes Sociais

Homenagem a Marielle na Alerj PAULO CARNEIRO/AGÊNCIA O DIA/AGÊNCIA O DIA/ESTADÃO CONTEÚDO

Homenagem a Marielle na Alerj Fernando Frazão/Agência Brasil
Para a criadora do instituto, a memória e a imagem de Marielle foram afetadas negativamente, mas as ações judiciais que a família moveu contra os agressores fizeram com que o impacto fosse menor.
“Hoje em dia recebo muitas mensagens de pessoas pedindo desculpas por terem acreditado e propagado mentiras. Não vejo ninguém fazendo o movimento contrário (alguém que sabia a verdade e começou a mentir depois). Então acho que estamos avançando”, afirma.
O professor Paulo acredita que o caso de Marielle demonstra o quanto a Justiça brasileira precisa avançar nas ações de combate à disseminação de fake news e ofensas contra a memória de mortos.
Ele defende que o estado tome medidas mais rígidas diante desses crimes, e que aplique punições não só às empresas de redes sociais mas também aos agressores. Para Paulo, é preciso investimento na investigação desse tipo de ato. A irmã da vereadora também defende que é preciso maior atenção da Justiça com esse tipo de crime.
“Acho que a Justiça precisa correr atrás de se atualizar e lidar com isso porque estamos falando de uma grave ameaça à democracia. E obviamente é necessário pensar um processo para dar conta de todos os graus de visibilidade, porque nenhuma família (famosa ou anônima) merece ter alguém que ama difamado”, afirma Anielle.