metropoles.com

Em meio à crise, nordestina usa a comida para espalhar afeto em SP

“A comida é uma forma de amar o outro e de encurtar a distância nesses dias tão cinzas”, diz Rejane Maria do Nascimento

atualizado

Compartilhar notícia

Arquivo pessoal
Rejane, cozinheira nordestina em SP
1 de 1 Rejane, cozinheira nordestina em SP - Foto: Arquivo pessoal

São Paulo – Para Rejane Maria do Nascimento, 49 anos, cozinhar é um ato de amor. E comida é algo que vai além de encher a barriga. Para ela, comida é afeto. Quem a ensinou a cozinhar – e os valores disso – foi seu falecido pai, Zacarias de Moura, quando ela ainda morava em Maracanaú, a 24 km da capital do Ceará, Fortaleza. Ela deixou o Nordeste há oito anos, para viver em São Paulo com suas três filhas e o marido. Na capital paulista, trabalhou em padarias e restaurantes, mas, com a pandemia, perdeu o emprego.

Cozinhar sempre foi a base financeira de Rejane. “Foi através do alimento que consegui o sustento para cuidar das minhas filhas. Trabalhei 10 anos fazendo comida congelada e mais seis vendendo comida na calçada de casa [no Ceará]. Eu fazia bolos, tortas e vendia porções de pastéis e salgados fritos na hora. Eu amava isso!” Ela conta que várias famílias se reuniam na frente da sua casa em Maracanaú para comer o tão falado ”pratim” – iguaria cearense geralmente composta por baião de dois, vatapá e carne-de-sol com farinha de mandioca.

Diante da dura realidade da falta de trabalho, que também atinge milhões de brasileiros, Rejane precisou se reinventar. Após um período de medo e depressão, sem saber como pagaria as contas, a cozinheira foi surpreendida com o pedido de uma amiga. “Um anjo chamado Laryssa me perguntou se eu fazia canudinhos, um canapé muito famosinho nas festas do Ceará. Eu disse que sim. E ela quis logo 100”, conta.

A situação a fortaleceu. “Sem emprego e sem perspectiva de um novo vínculo devido à pandemia, resolvi investir em um sonho antigo: vender comidas típicas do Nordeste”, diz Rejane. E assim nasceu o “Sabor do Nordeste”, um perfil no Instagram onde é possível fazer encomendas de pratos nordestinos em São Paulo.

No Sabor do Nordeste, uma amiga e a família de Rejane cooperam na cozinha. “A equipe é composta por mim, meu marido, três filhas, três genros e uma grande amiga paraibana, de quem fui assistente no meu primeiro emprego aqui [em SP], e que ficou desempregada”, explica a cozinheira. O marido de Rejane, Edvar, perdeu o emprego há um mês. Desde então, coopera com as compras e a limpeza da cozinha.


Rejane reconhece que essa não é uma história de superação em meio à pandemia. Tocar seu pequeno negócio é um desafio diário, em um Brasil que amarga duros índices de desigualdade. “O Sabor aconteceu da necessidade de eu arcar com minhas despesas mensais depois de ter sido demitida na primeira semana de pandemia. Eu não tenho um restaurante. Cozinho em casa mesmo”, conta a cozinheira.

“Se eu sonho em ter um restaurante? Esse sonho, o vírus deixa cada vez mais distante. Vi grandes restaurantes fecharem as portas, e isso me deixa muito triste. É uma luta começar o seu próprio negócio. Esperanças em dias melhores é o que me mantém com a saúde mental ok”, lamenta.

Comida e afeto

Com a pandemia e a dificuldade das pessoas para visitar seus familiares no Nordeste, o negócio de Rejane ocupou um lugar de afeto entre os migrantes nordestinos que vivem na capital paulista. O que confirma a sua crença: a comida tem uma relação muito forte com a afetividade. “Estamos tentando entender como manter o nosso pequeno negócio baseado no afeto. Faço questão de mandar bilhetinhos personalizados, de saber das histórias de vida, da relação do alimento com a memória afetiva de cada um”, explica.

Como cozinheira, Rejane conta que sua maior alegria é ouvir aquele ‘hummmmm’ do cliente. “Eu gosto de cozinhar. Acho uma forma linda de amar o outro. Cozinhar com amor torna a comida mais saborosa e cheirosa. Eu gosto de cozinhar cantando e gosto de observar a beleza das cores dos legumes e os cheiros dos temperos frescos. Eu acho que ‘paquero’ o alimento.” Ela se emociona ao saber que com a comida que faz ela aguça lembranças e proporciona felicidade. “Quando escuto que o frango da coxinha lembrou o temperinho da vovó, eu choro demais.”

0

A iniciativa tem dado certo e se espalhado por SP. Animada, Rejane conta que iniciou o Sabor do Nordeste com apenas 134 seguidores no Instagram. Agora, já conta com quase 2 mil pessoas acompanhando o seu trabalho. “E pode acreditar, já cozinhei para muitos e muitos deles”, afirma.

Ela ainda conta que nunca pediu patrocínio ou que as pessoas citassem os seus pratos em redes sociais. Explica que foi totalmente espontâneo. “Somos diariamente marcados em postagens que falam sobre nostalgia, saudade e amor. A comida acaba sendo essa forma de amar o outro e encurtar a distância, pelo menos afetiva, entre SP, nesses dias cinzas, e a nossa terrinha.”

Compartilhar notícia