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“Ela matou meu filho e segue livre”: morte de Miguel completa 1 ano

Mirtes Renata, mãe do menino, denuncia morosidade. Processo está em fase inicial e Sari Corte Real, acusada de abandono, não foi ouvida

atualizado

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Arquivo Pessoal
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1 de 1 mirtes-renata-e-miguel-2 - Foto: Arquivo Pessoal

Roupas, brinquedos e livros de Miguel Otávio Santana da Silva ainda estão no mesmo lugar. Mirtes Renata Santana de Souza, 34 anos, que há exatamente um ano carregou o filho nos braços pela última vez, não consegue se desfazer das lembranças. O garoto de 5 anos morreu ao cair do nono andar de um prédio de luxo na região central do Recife, em 2 de junho de 2020. Ele foi deixado sozinho no elevador de serviço pela empregadora de Mirtes, Sarí Corte Real, casada com o então prefeito de Tamandaré, Sérgio Hacker.

“Não consegui me desfazer das coisas dele. Doei os leites que tinha comprado para ele, as coisas perecíveis. Meu coração ainda permite que eu mantenha todo o resto”, diz Mirtes, em entrevista ao Metrópoles sobre o ano que se passou.

Todo dia 2, Mirtes acende uma vela e junto da avó de Miguel, Marta Souza, reza pelo filho. “Agora ele é um anjo de luz”. Normalidade é uma palavra que não cabe na vida de Mirtes. “É impossível viver normalmente sem o meu filho. Todo dia eu acordo e durmo pensando em como fazer com que o caso não seja esquecido”, afirma.

Há números e datas que Mirtes jamais vai esquecer. Miguel nasceu em 17 de novembro de 2014, às 7h42, pesava 4,530kg e media 52cm, na maternidade João Murilo de Oliveira, em Vitória de Santo Antão. As dores começaram às 4h da manhã, quando o pai de Miguel já tinha saído para trabalhar como pedreiro. Uma conhecida levou Mirtes até o hospital.

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“Foi um parto difícil, tentei normal mas não consegui. De última hora, fizeram cesárea. Miguel nasceu do jeito que eu sonhava, rolicinho, bem cabeludinho, a coisa mais linda do mundo. Foi lindo demais”, lembra. Quando morreu, Miguel era um garoto saudável, bem cuidado e feliz, media 1,14m e tinha 24kg. “Lutei por ele em vida e vou lutar agora também”, diz a mãe.

Nesses doze meses, Mirtes passou pela primeira vez Natal, Ano Novo, o próprio aniversário, o aniversário de Miguel e o Dia das Mães sem motivos para comemorar. “O Dia das Mães foi o mais difícil. Vi nas redes sociais as pessoas postando fotos com seus filhos e eu só pensava: eu estou sem o meu filho para botar no colo e dar cheiro, para ele aperrear mainha para ir na rua comprar presente para mim”, desabafa Mirtes.

O processo corre na 1° Vara de Crimes contra a Criança e o Adolescente (Cica) do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE). A audiência com Sarí Mariana Costa Gaspar Corte Real deveria ter ocorrido em dezembro, mas foi desmarcada e não se concretizou até o momento.

“Sarí não teve nem sequer audiência. Me deixa muito revoltada essa falta de respeito com a minha pessoa. Não basta a dor que eu sinto pela perda do meu filho, fazem essa bagunça com o processo. Botam a culpa na pandemia, mas está tudo funcionando remoto”, queixa-se.

Sari Corte Real
Sari Corte Real, a empregadora de Mirtes Renata, que estava com o menino Miguel

O Metrópoles entrou em contato com o Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE) para ter informações sobre as fases processuais, mas não houve resposta até a publicação desta reportagem. O crime de abandono de incapaz com resultado em morte tem pena de 4 a 12 anos de prisão. 

A acusada aguarda o julgamento em liberdade provisória após ter sido presa em flagrante e liberada após pagar R$ 20 mil em fiança. “Ela matou uma criança e segue livre. Tinha se mudado para Tamandaré, mas já voltou a viver no prédio onde tudo aconteceu. Na vida dela não muda nada”, afirma Mirtes.

“Se fosse eu que tivesse abandonado o filho dela, eu estaria no presídio e o caso estaria solucionado”, destaca Mirtes.

Mirtes matriculou-se na faculdade de direito, após perder o filho. “O Judiciário é classista, machista e racista, precisa de profissionais com a real visão do mundo e que não se vendam. Quero ajudar outras mães a não passar pelo que venho passando agora.”

Também passou a trabalhar em organizações não governamentais como a Afro Resistência e o Grupo Curumim, que defendem a igualdade racial e de gênero, entre outros direitos humanos.

“Antes de tudo que aconteceu eu não tinha nem tempo para pensar sobre o que era racismo sistêmico. Saía de casa 4h para trabalhar, voltava à noite. A vida toda foi uma luta. Depois desse crime, eu entendi o peso de ser negro no Brasil. Uma pessoa branca e rica cometeu o crime contra uma vítima negra e pobre, isso muda tudo”, afirma Mirtes

Mirtes nasceu no Alto José do Pinho, Zona Norte do Recife. Aos 27 anos, casou-se com o pai de Miguel e engravidou. Já foi garçonete, recepcionista, auxiliar de cabeleireira e carpinteira. “Quando terminei os estudos corri atrás de vários empregos. Fiz seleção para lojas de roupa e não estava de acordo com padrões de beleza, sofri preconceito por morar longe, em Bonança. Várias portas não se abriram”, relata.

O primeiro emprego com carteira assinada foi como carpinteira e depois como empregada doméstica. Em 2016, Mirtes passou a trabalhar para Sarí Corte Real, de quem cuidava dos filhos.

“Comecei a entender que sofro racismo desde que me conheço por gente. Desde a infância até não ser dispensada do trabalho na pandemia, trabalhei doente. A primeira vítima de Covid no Brasil foi uma empregada doméstica negra”, destaca.

Justiça 

Em março de 2021, a Justiça do Trabalho em Pernambuco condenou Sarí Corte Real e Sérgio Hacker ao pagamento de R$ 386.730,40 por danos morais coletivos.

A ação civil pública proposta pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) resultou na sentença, sobre a qual ainda cabe recurso. O dinheiro, porém, não vai para a mãe de Miguel e será depositado em um fundo da Justiça do Trabalho.

A ação cita o vínculo de Marta Santana, avó de Miguel, com a prefeitura de Tamandaré, mesmo trabalhando como empregada doméstica na casa do ex-prefeito Sérgio Hacker. Além disso, trata de uma “discriminação estrutural que envolve as relações de trabalho doméstico”.

No outro processo, movido pela família de Miguel, a acusação pede R$ 987 mil em indenização por danos morais e materiais. Mirtes, porém, afirma que o dinheiro não é o mais importante. “Só quero que ela seja presa, que a morte do meu filho não seja ignorada. O advogado me disse que pode demorar uns 5 anos, mesmo com todas as provas e testemunhas”, diz Mirtes.

Mirtes também pede Justiça por outras crianças vítimas de crimes sem desfecho legal. “Depois do Miguel outras crianças negras perderam a vida, como se não importassem. Vejo o caso João Pedro, os meninos desaparecidos de Belford Roxo, os nomes vão se multiplicando. Olhe o caso de Henry, a agilidade da polícia, do judiciário, o quanto se empenham em resolver. É muito escancarado. O nome disso é racismo.”

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