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O futuro foi ontem

O médico pensa que é Deus; o jornalista tem certeza. Ou melhor: tinha

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Arte de Antonio Lucena
Arte de Antonio Lucena
1 de 1 Arte de Antonio Lucena - Foto: Arte de Antonio Lucena

Em 20 de março de 2004, há exatos 18 anos, ao pôr no ar o Blog do Noblat, ouvi de muitos colegas que aquela seria uma tarefa condenada ao fracasso.

Quem daria importância a um tipo de página na internet onde qualquer um pudesse escrever o que lhe viesse à cabeça?

Fora os adolescentes, voltados para o seu próprio umbigo, quem mais levaria a sério um meio que servia à publicação de diários?

Entre uma notícia oferecida por jornais, emissoras de rádio e de televisão, e outra oferecida por um blog, qual delas mereceria mais confiança?

O jornalismo ampara-se na confiança. As pessoas tendiam a acreditar mais no conteúdo de um grande jornal do que no conteúdo de um pequeno.

Grife! O termo era desconhecido nas redações a não ser por jornalistas dedicados à cobertura de assuntos femininos. Sim, havia essa distinção.

A TV Globo é uma grife. Um blog seria incapaz de se transformar numa grife. Porque blogs acabariam sendo milhões. A Globo é uma só.

Eu deveria, pois, continuar trabalhando na mídia tradicional, foi o que me disseram. De resto, já não era mais tão jovem para me dar a aventuras.

Certamente, ainda levaria tempo para que a moda dos blogs de jornalistas chegasse ao Brasil. E ela logo passaria como a maioria das modas; era o que eu ouvia.

Na época, segundo o The New York Times, apenas uma dezena de blogueiros nos Estados Unidos ganhava algum dinheiro com o seu ofício.

Por estas bandas, a internet comercial só fora inaugurada em 1995. O e-mail era o rei do pedaço, imagine! O Orkut tinha dois meses de vida.

Jornalista era avesso a interagir com seus chefes – quanto mais com o distinto público. Dos chefes, recebia ordens.

Foi assim até quando a maioria dos jornalistas, a contragosto, percebeu que não deveria ter sido assim.

Que não poderia mais ser assim. Que assim seria um suicídio a prazo relativamente curto. Talvez tenha percebido tarde demais.

Enquanto dirigia a redação do Correio Braziliense entre 1992 e 2002, os telefones tocavam e repórteres e editores fingiam que não ouviam.

Estavam cansados de saber que, na maioria das vezes, eram ligações de leitores, “esses chatos”, inoportunos, sedentos de atenção.

Onde se vira leitor dar palpite no serviço alheio?

Alheio define bem o jornalismo então praticado. Alheio à opinião dos consumidores (leitor de jornal passou a ser chamado de consumidor nos anos 90).

Alheio às exigências do mercado (ao conjunto de anunciantes deu-se o nome de mercado nos anos 90).

Enfim, jornalismo alheio às necessidades do seu público. E, o pior: jornalismo que não tomava partido do público. Vivia em conflito com ele por viver em paz com os interesses do poder político e econômico.

O médico pensa que é Deus; o jornalista tem certeza. Ou melhor: tinha.

Hoje, confusos e aflitos, os jornalistas e os donos dos antes prósperos meios convencionais de comunicação correm atrás do prejuízo.

Centenas de jornais fecharam mundo a fora. Centenas que ainda existem perdem circulação a uma velocidade espantosa.

Desaba a audiência de emissoras de rádio e de televisão. O jornalismo do futuro, e o futuro foi ontem, está na internet. Mas ela nos é estranha.

Não é fascinante você só ler o que lhe interessa, ou que alguém lhe sugeriu que lesse por ser importante?

E só ouvir o que você gosta, podendo descobrir que há muita coisa boa e você nem se dava conta disso?

E montar sua própria grade de programas em vídeo? E assisti-los na hora que lhe for mais conveniente?

E como se não bastasse: quase tudo de graça!

Evo Morales culpou as redes sociais pela derrota no referendo que lhe negou a chance de disputar o quarto mandato de presidente da Bolívia.

É no que dar desmerecer a força do povo.

Quanto ao meu blog: continua no ar. Mas também pode ser encontrado no Facebook, Twitter e Instagram. No Telegram, não. Os bolsonaristas se refugiaram ali e eles não gostam de mim.

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