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Vencer a morte (por Por Manuel Loff)

Hebe de Bonafini foi a mais destacada dessas mulheres extraordinárias que ajudaram à queda da ditadura argentina

atualizado

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Hebe de Bonafini
1 de 1 Hebe de Bonafini - Foto: Instagram

Primeiro, em 1977, sequestraram o seu filho mais velho, Jorge, depois o outro, Raúl. Um ano depois, os militares levaram a nora, María Elena. Nenhum deles voltou a aparecer com vida. Até então, Hebe de Bonafini, era, aos 48 anos, “apenas uma dona de casa” argentina, para quem “a situação economica e política no meu país era indiferente”. “Mas desde que o meu filho desapareceu, o amor que senti por ele, a ânsia de o procurar até o encontrar, de exigir que me fosse entregue, o encontro e o desejo partilhado com outras mães que sentiam o mesmo desejo que o meu, puseram-me num mundo novo, fizeram-me saber e valorizar muitas coisas que eu não sabia e que antes não me interessava saber” (entrevista ao Página Digital, 12.2.2002).

Hebe de Bonafini morreu no dia 20. Tinha 93 anos e foi a mais destacada dessas mulheres extraordinárias que, denunciando os sequestros e assassínios perpetrados pela ditadura argentina (1976-83), ajudaram à queda desta e foram decisivas para se conseguir o julgamento dos seus responsáveis. Quando, depois do fim da ditadura, o poder político se sujeitava à chantagem dos militares e recorria à retórica rançosa da “reconciliação” que normalmente serve sempre apenas para indultar ricos e poderosos declarados culpados daquilo que julgam poder fazer impunemente, ela não parou enquanto não conseguiu que voltassem à prisão os poucos militares que haviam sido condenados e que fossem processados todos os responsáveis pelos 30 mil desaparecidos da ditadura argentina.

Foi graças a ela e às Madres de la Plaza de Mayo que a Argentina se tornou o caso mais notável, e mais digno de uma democracia, de uma justiça transicional que procurou efetivamente apurar as responsabilidades na violação de direitos humanos. Nem no Chile ou em Espanha, no Brasil ou em Portugal, tal foi feito. Consegui-lo foi, em grande medida, produto da coragem em desafiar o poder de umas dezenas de mulheres que, partir de abril de 1977, todas as quintas-feiras, lenço branco na cabeça, se reuniram na Plaza de Mayo de Buenos Aires, em frente ao palácio da presidência, para exigir saber dos seus filhos desaparecidos. Eram mães e avós de militantes de esquerda, sindicalistas, jovens ativistas que na Argentina dos anos seguintes ao golpe de Pinochet no Chile procuravam resistir à deriva autoritária do Estado e foram sujeitos ao que o Direito Internacional passou a designar como “desaparecimento forçado”. Como escreveu o Papa Francisco no dia da sua morte, “a sua valentia e a sua coragem, em momentos em que imperava o silêncio, impulsionou e depois manteve viva a busca da verdade, da memória e da justiça”.

Trinta anos depois, as Madres de Mayo podiam orgulhar-se de ter criado um movimento social imparável que obrigara o novo presidente Kirchner a revogar a amnistia e os indultos que Alfonsín e Menem haviam decretado para os perpetradores e forçar à reabertura dos processos. Bonafini, que, ao contrário de outras que a ditadura tamdebém sequestrou e matou, sobreviveu à repressão e a todos os processos que a direita argentina lhe moveu, lembrou então que, “face ao poder” do Estado, “pusemos o nosso corpo que é a única coisa que temos para pôr”. “Vencemos a morte, queridos filhos. Vencemos o verdugo!”, disse ela aos desaparecidos. “E isto é vida pura, cheia de amor e de abraços.” Apesar dessa vitória, “ainda há muito que fazer. Ainda há fome, desemprego, falta de casas”, reiterava ela, lembrando que a luta pelos direitos humanos não se esgota nunca em processos na justiça nem na recuperação da memória. E, justamente por isso, em nome dos valores por que foram assassinados os desaparecidos, Bonafini manteve-se sempre intransigente “contra as homenagens póstumas [com] que os políticos que estiveram de acordo com a ditadura se limpam”. Na Faculdade de Arquitetura de Buenos Aires, por exemplo, 145 estudantes foram sequestrados e assassinados pela ditadura e agora “queriam colocar todos os seus nomes numa parede”, como se tivessem sido “levados para estudar Arquitetura. Não, falta o principal: eram revolucionários, e foram [mortos] por isso mesmo! Rejeitamos as homenagens, as placas, os monumentos, e continuamos a dizer que os nossos filhos estão vivos, com cada vez mais força!”. Como ela e os seus valores. Vivos.

(Transcrito de o Público)

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