Uma vida bem vivida (Por Hubert Alquéres)

FHC lança livro de memórias: Um intelectual na política

Difícil acreditar mas aconteceu. Um dia Fernando Henrique Cardoso esteve sob a suspeita de ser trotskista e foi obrigado a se explicar quando foi intimado a depor em 1975 na famigerada Operação Bandeirante-Oban, o truculento centro de investigações criado no II Exército em São Paulo.

A confusão decorreu de uma gentileza sua ao sair de um congresso de intelectuais na cidade do México. Já no aeroporto viu uma participante do encontro e carregou sua mala até ser despachada. Para seu azar a moça era casada com um dirigente da Quarta Internacional. Foi o suficiente para seus inquisidores concluírem que sob a capa de intelectual respeitado escondia-se um perigoso agente do comunismo internacional.

Prestes a completar noventa anos de idade, no próximo dia 18 de junho, Fernando Henrique conta com uma certa dose de humor o episódio em seu recém lançado livro de memórias: Um intelectual na política (editora Companhia das Letras, 2021).

Pelas páginas da obra encontramos a fina flor da intelectualidade de uma época: Sartre, Marcuse, Foucault, Alain Touraine, Raul Prebisch, Marta Harnecker, Florestan Fernandes, Antônio Cândido, Fernando de Azevedo, Celso Furtado, entre outros.

O ex-presidente brasileiro foi protegido pela fortuna de ser testemunha e protagonista da nossa história. Viveu a ebulição dos anos 50, o maio parisiense de 1968, lecionou em universidades mundialmente reconhecidas como Cambridge na Inglaterra ou Nanterre na França e trabalhou na Comissão Econômica para a América Latina – CEPAL.

No seu tempo, a academia foi a grande usina do moderno pensamento brasileiro. Como centro de efervescência o debate corria solto, em clima de tolerância. Por isso mesmo as ciências sociais, em especial a sociologia, viveu o momento mais virtuoso de sua história, dando enorme contribuição para o entendimento da formação do Brasil e da complexidade da sociedade brasileira.

Filho, neto e bisneto de generais, certamente o ex-presidente teria chegado ao mais alto posto militar, se seus pendores acadêmicos não tivessem falado mais alto. No seu mais recente livro, que ele diz ser o último de sua vida, rende enorme tributo a Florestan Fernandes pelo papel do mestre em sua formação. Para ele a grande virtude de Florestan foi formar seus discípulos livres de dogmas e de levar devidamente em conta o particular de cada situação concreta. Ou seja, fazer o roteiro do particular para o geral, em vez de aplicar mecanicamente conceitos gerais.

Surgiu assim toda uma geração de “sociológicos de campo”, como o próprio FHC se autodefine. A valoração da pesquisa aparece já nos seus primeiros trabalhos quando investiga e estuda tanto o empresário brasileiro, como os trabalhadores. O foco na particularidade de cada realidade investigada está presente na sua tese de doutorado Capitalismo e escravidão no Brasil meridional, um clássico da sociologia brasileira. Exilado no Chile em 1964 viria a produzir em parceria com Enzo Faletto outra obra seminal: Dependência e Desenvolvimento na América Latina.

Sua iconoclastia consiste em se contrapor às teses estagnacionistas, entre as quais as concepções cepalinas, que negavam a possibilidade de desenvolvimento dos países periféricos do capitalismo, em função de sua dependência em relação às nações centrais, leia-se principalmente o “imperialismo norteamericano”. Ora, se o subdesenvolvimento era estrutural, só seria superado por meio de uma ruptura, que para a esquerda se daria por meio de uma revolução.

Fernando Henrique foca mais no desenvolvimento do que na dependência, mostrando que mesmo na América Latina os países se integravam na economia mundial, por meio da associação entre o “capital nacional” e o internacional. Assim, suas economias não estavam estagnadas e se desenvolviam, a despeito da dependência.

Em seu livro de memórias também fica claro que apesar da política estar presente em sua família – seu pai foi deputado federal – sua atividade nesse campo foi alavancada a partir da instalação da ditadura militar e, em especial, no seu recrudescimento com a decretação do AI-5.

Antes do período ditatorial, fazia política na academia e era mais um observador do que um ator político nos anos conturbados do pré 1964. Não que fosse um alienado, longe disso. Nos anos 50 tinha relação superficial com o Partido Comunista Brasileiro, mas dele se afastou junto com Fernando Pedreira e outros intelectuais, quando da invasão da Hungria pelos tanques soviéticos. Os dois consultaram o intelectual Paulo Emílio, que no passado também havia sido ligado ao Partidão, e ele responde: “Por que só agora vocês romperam? Eu saí bem antes”.

Os anos de chumbo sufocam o mundo acadêmico. Aposentado compulsoriamente da USP, aos 37 anos pelo AI-5, FHC cria então o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) para elaborar estudos e pesquisas em sociologia, política, filosofia, economia, antropologia e demografia, tendo em vista que as universidades haviam perdido a efervescência intelectual de antes. Por meio de artigos publicados nos jornais de resistência como o Opinião e o Movimento, começa a influenciar a oposição legal.

Era o tempo da derrota e aniquilamento da esquerda armada e da revalorização da via institucional. O MDB, que quase foi para a autodissolução com a derrota eleitoral de 1970, ressurgia das cinzas em 1974.

É nessa quadra que Fernando Henrique e Ulysses Guimarães estreitam os laços, quando o líder da oposição procura o Cebrap para a elaboração do programa do MDB na disputa das eleições de 1974. Quatro anos depois, concorre ao Senado e em uma eleição com sublegendas fica como suplente de Franco Montoro.

Doze anos mais tarde é eleito presidente da República e se transforma em um caso raríssimo: um intelectual no cargo máximo de seu país.

Quem ler o livro de memórias de Fernando Henrique vai concordar com o título do último capítulo: Uma vida bem vivida. Sim, aos 90 anos continua produtivo e atuante, antenado nos problemas contemporâneos como a desigualdade e a crise das democracias.

O intelectual não dogmático é um político de mentalidade aberta e livre de tabus, para quem não há barreira intransponível quando estão em jogo a democracia e os interesses do país a quem tão bem serviu em toda a sua vida pública.

 

Hubert Alquéres é membro da Academia Paulista de Educação, da Câmara Brasileira do Livro e do Conselho Estadual de Educação. Foi professor na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, na Escola de Engenharia Mauá e no Colégio Bandeirantes. Escreve às 4as feiras no blog do Noblat.

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