Não. Mais da metade é nicotina. Foi por aí a conversa com o radiologista do combalido pulmão de Anita.
Outros muitos exames de imagem depois, ratificaram: enfisema pulmonar. Pequeno, é verdade. Mas suficiente para alegrar um clínico – essa gente que adora proibir prazeres. No Smoke, disse o doctor com aquele prazer que só os médicos sabem ter quando tiram de algum paciente algo semelhante a um pirulito de criança.
O No Smoke não veio acompanhado de um Please. Veio assim seco, impositivo, autoritário. Com sentença de para sempre.
Anita é daquela estirpe de leonina que, sob pressão, não muda um titico da vida. A pressão gigante sobre os fumantes com ela nunca funcionou.
Cada vez que alguém sugeria deixar o vício ou cobrava a quantidade de cigarros consumidos, Anita reagia acendendo mais um. E ficava com vontade quase irresistível de complementar o desaforo acendendo e fumando três de uma só vez.
Vai fumar outro? Era gatilho pra consumir um maço inteiro, sem parar, um cigarro colado no outro.
Por 40 anos, Anita seguiu desfrutando da fumaça e da rebeldia. E debochava: Fumo sim e vou vivendo. Tem gente que não fuma e tá morrendo.
No caso de leoninas, filhas de Iansã, morrer é o de menos. Faz parte. Não amedronta.
Insuportável é viver com desconforto, incômodo ou desprazer.
Mais do que a ordem médica, foi o incômodo da tosse forte, que vinha e ia, o que fez Anita decidir largar o cigarro, na marra. Confiando na decisão tomada.
Pensou: se uso remédio, esparadrapo, chicletes, ponto na orelha, vou terceirizar a decisão. Daí, passo pra essas bengalas a responsabilidade pelo possível fracasso na tentativa de deixar o vício. Tipo. Tentei, mas nada fez efeito. Eu tentei…
Reflexão feita, decisão tomada. Lá se foi a moça encarar a seco mais uma das despedidas de coisas boas de vida. Nem venha dizer que fumar é ruim. Se fosse, depois de anos de demonização, não haveria nem mais um fumante.
- É bom, mas faz mal. Pra maioria. Que seja!
Com três cigarros no que estava programado para ser o derradeiro maço, Anita decide: Quando fumar bem fumado esses três, o maço vazio vai pro no lixo. E fim. Sou mulher ou um rato incapaz de bancar essa pequena decisão de vida?
PEQUENA pra você, cara pálida.
Cada um daqueles canudinhos cheirosos que assentam perfeitamente entre os dedos contem: folhas secas de tabaco (nicotina rusticum e tabalm) e mais 4.500 outros complexos químicos, como arsênico, amônia, sulfito de hidrogênio, cianeto hidrogenado e etc.. Juntos e misturados, foram especialmente preparados pra fazer de você uma dependente química, uma adicta daquele prazer.
E isso não é pouco, nem pequeno.
Na Roma Antiga, o termo “adictu” definia um “escravo por dívida”. Alguém que, sem condições de saldar uma dívida, se transformava em escravo do seu credor. Condição que poderia durar até que o pagamento fosse saldado ou para sempre.
O primeiro dia da vida de Anita sem seus deliciosos cigarros foi um inferno onde a pessoa é ao mesmo tempo diabo e vitima queimada em enxofre fervendo. O segundo dia foi um pouco pior. Os 10 dias seguintes foram péssimos. A vida nunca foi tão sem graça, sem alma. As séries nunca foram tão ruins. Os livros nunca foram tão chatos.
Lá se foram os tais primeiros dias em que a ex fumante subiu pela parede, arranhou muros, mergulhou em piscinas vazias, atolou-se na lama agarrada na “PEQUENA” decisão de não mais entregar-se ao velho e bom prazer da fumaça, avançando, sem dó, cabeça, tronco e membros. Pulmão em prioridade.
Com o calendário andando muito lentamente, a já quase ex fumante chega à etapa dois. Mais 10 dias de prostração. Hora do luto pela perda de um grande prazer. No papel de ataúde, cama, sofá ou rede enveloparam aquele corpo sem qualquer alegria de viver. Neste ponto, a adicta começa a ter coceiras e a salivar quando aparece o desejo intenso de fumar – unzinho que seja. Mas, surpresa! Vem aí uma parte boa: a fome, que empurrava um de tudo boca adentro, vai embora. Viver de água e luz passa a ser a opção preferencial.
O mês entra no terço final. Quase vitoriosa, a sofredora passa à soberba – deu certo, parei.
Não é bem assim. Lá vem a etapa três. Nem inferno, nem prostração. Agora, o corpo de Anita, conduzido pela memória, sai casa afora buscando cigarros nos lugares onde antes eles estariam.
Sem qualquer comando, de repente, do nada, o corpo sai da sala de TV, da cozinha, do jardim e vai direto ao ponto memória dos maços guardados. Faz isso em autonomia plena. Como se fosse um servidor da Receita Federal, concursado, independente, profissional, que sabe exatamente o que procura e vai à caça para achar e apreender.
A dona do corpo surpreende-se parada diante da estante no banheiro onde pacotes de cigarros costumavam estar guardados. Nem percebeu como foi até ali. O espaço está vazio. Anita ri da independência que o desejo alcança. Lembra quando, de madrugada, alucinada de paixão foi bater na casa de um ex.
Os cigarros desejados, como o ex, não estavam mais no lugar habitual.
O ex fumante é e será sempre um adicto. Se fumar um, volta ao consumo indesejado.
Adicção é vício. Está associada ao consumo abusivo de algo. A adicção é relacionada a qualquer compulsão ou dependência física e/ou psicológica – de drogas, ilegais ou legalizadas, como o álcool, o cigarro ou a paixão, também de comida, videogames, sexo e etc…
Anita aguarda as próximas fases de sua convivência com a adicção. Pensa em pedir conselhos para o ChatGPT. E segue odiando a malvada regra: Tudo que é bom mata ou engorda.
Tânia Fusco é jornalista