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Projeto traz o risco de a bala comer solta (por Maria Isabel Couto)

A quem interessa dificultar o rastreamento de munições e a investigação de homicídios, e facilitar o acesso a armas antes restritas?

atualizado

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Divulgação/PCDF
Armas em cima de mesa
1 de 1 Armas em cima de mesa - Foto: Divulgação/PCDF

Cerca de três armas de fogo de caçadores, atiradores e colecionadores (CACs) se perdem por dia no Brasil. Entre elas estão fuzis, que podem disparar até 600 balas por minuto e têm um alcance de 800 metros. São centenas de armas que vão para a rua sem controle e que têm o poder de destruir famílias.

Esse risco pode ficar ainda maior. Está na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado o Projeto de Lei 3.723/2019, o PL da Bala Solta. O projeto, se aprovado, ampliará a quantidade de armas permitidas para CACs, facilitará o porte para milhares de pessoas e acabará com as marcações nos projéteis disparados por pistolas, fuzis e outros armamentos. Atualmente, essas marcações são essenciais para fiscalizar o desvio de munições e elucidar homicídios.

Tomemos os exemplos dos assassinatos de Patrícia Acioli, em 2011, Marielle Franco e Anderson Gomes, em 2018. Nesses crimes, o rastreamento da munição foi essencial. No caso Marielle, cuja investigação, vergonhosamente, ainda não foi concluída, policiais descobriram que as balas inicialmente pertenciam a um lote da Polícia Federal e foram parar nas mãos de assassinos de aluguel. Os mandantes ainda não foram identificados, mas os responsáveis pelos tiros, sim. As balas que mataram Patrícia levaram a investigação até um batalhão de Polícia Militar para onde aquele lote de munição havia sido distribuído legalmente. Assim, descobriu-se que o mentor do crime era um comandante da PM, que foi condenado e preso.

Esse tipo de investigação ficará mais difícil, já que o Projeto de Lei, se aprovado, eliminará a marcação de munições, dificultando o rastreamento. Atualmente, cada caixa de munição tem um código de barras que identifica quem são o fabricante e o comprador. O PL quer acabar com isso.

Num país em que apenas 44% dos homicídios são esclarecidos, por que acabar com um recurso tão útil em investigações? Se até os crimes de repercussão internacional —como o caso Marielle, sem conclusão há quatro anos — continuam travados, que esperança há para tantos outros inquéritos que dormem nas gavetas das delegacias?

Além de ficar mais difícil investigar, corremos o risco de ver nas ruas muito mais armas que até há pouco tempo eram de uso restrito das forças de segurança. O Brasil já tem mais de 450 mil CACs. Há mais cidadãos potencialmente armados que policiais militares na ativa.

Hoje, cada CAC pode ter até dez armas. O PL da Bala Solta amplia esse número para 16. Os CACs também estarão autorizados a transportar armas carregadas, em qualquer horário e trajeto. Antes, era permitido transportar armas carregadas apenas no trajeto entre a casa e o local de prática de tiro.

Ampliar a oferta de armas e afrouxar a fiscalização não traz benefícios para uma sociedade em que mais de 40 mil pessoas são mortas a tiros todo ano. A pergunta que fica é: no Brasil de 2022, a quem interessa dificultar o rastreamento de munições, dificultar investigação de homicídios e facilitar o acesso a armas antes restritas?

 

Maria Isabel Couto é diretora de programas do Instituto Fogo Cruzado e doutora e mestre em sociologia pelo Iesp/Uerj;

(Artigo transcrito de O Globo)

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