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Por que ele não será reeleito? (por Paulo Sternick)

Se Bolsonaro tentar um novo mandato, o gorila será notado pela maioria dos desatentos de 2018

atualizado

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Fábio Vieira/Metrópoles
Bolsonaro esteve ao lado dos seus médicos e do hospital para falar da sua saúde
1 de 1 Bolsonaro esteve ao lado dos seus médicos e do hospital para falar da sua saúde - Foto: Fábio Vieira/Metrópoles

A metáfora do gorila invisível — num teste psicológico, o primata cruza de forma ostensiva o meio de um jogo de basquete, mas não é percebido por mais da metade dos que lhe assistiam — ganha novo realce no cenário político brasileiro. Em 2018, Bolsonaro foi eleito no segundo turno com 55,13% dos votos válidos. A maioria dos eleitores também não viu o gorila, não obstante ele bater no peito, guinchar e secretar fúnebres hinos de tortura e louvores à ditadura. Não resta dúvida de que alguns, só por isso, votaram no capitão: são expressão de uma faceta subterrânea e violenta — embora minoritária — da alma brasileira.

Na semântica popular — mas com todo o respeito a supostos ancestrais —, o substantivo gorila, fiel à triste memória da ditadura, passou a definir o militar de extrema direita, que toma o poder pelo golpe ou defende essa via. Por extensão, deu nome a pessoas truculentas e políticos fascistas — os que supõem bastarem jipe e soldado para fechar o STF. Na fauna das analogias para desvendar a oculta — e negada — realidade que nos cerca, há outra: a do rinoceronte cinza, que define um risco não percebido. Embora esteja bem à nossa frente: gorilas, pandemias, mudança climática.

O bombardeio de estímulos a que estamos submetidos produz hoje uma conspiração anônima e invisível contra a atenção. Perde-se o foco com facilidade. Ficamos cegos ao visível e sujeitos à manipulação. Freud notou que a atenção foi exigida à mente humana por força da tarefa de observar a realidade. Mas deixou implícita a origem da atenção no sistema alucinatório, que a precede. O parentesco explica por que deixamos de ver o que está bem à frente ou inventamos um real que não existe fora da cabeça: figuras bizarras, anfíbias, meio reais, meio imaginárias. Alucinação não é monopólio dos psicóticos.

E a invisibilidade não é privilégio do gorila da extrema direita. As pesquisas hoje mostram eventual retorno do ex-presidente Lula. É preciso lembrar as mazelas do petismo? Porém, com bom trânsito internacional, capacidade de articulação política, Lula agora pode ser um avanço civilizatório ante o que está vigente. Em seus dois mandatos, facilitado pelo boom das commodities e boa equipe econômica, desfrutamos crescimento e expansão cultural, distribuição de renda, e a Bolsa subiu 497,3%.

Há consolo na esperança de constituição de uma frente democrática que equilibre os extremos e sirva como regulador ético. Até suspeitos líderes carismáticos podem crescer com a experiência da dura lição dos últimos anos. O Brasil está deteriorado; os valores, em decadência; a qualidade de vida nunca se viu tão prejudicada.

Na segunda vez que fizeram o teste do gorila, quase todos o perceberam. Se Bolsonaro tentar a reeleição, o gorila será notado pela maioria dos desatentos de 2018. Não terá de novo o voto dos que acordaram, dos que sofreram na pele o estrago deixado em seu rastro primário e truculento — das mortes da pandemia à fome e ao desemprego de milhares de brasileiros, além do descrédito financeiro e do repúdio diplomático internacional.

Paulo Sternick é psicanalista. Artigo transcrito do jornal O Globo

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