Dois dias antes da primeira viagem a Moscou após o início da guerra na Ucrânia do presidente reeleito da China, Xi Jinping, uma repórter da agência estatal de notícias chinesa chegou à capital russa com uma pequena câmera na mão e algumas perguntas na cabeça.
Entrevistou passageiros russos e chineses, conversou com pessoas nas ruas e fez do Zoológico de Moscou, em frente ao ambiente ocupado por ursos panda vindos da China, o cenário para entrevistas com famílias russas em um dia de passeio.
Uma jovem mãe russa, aparentemente emocionada com a visita de Xi, disse à repórter que muitas crianças de seu país estão aprendendo mandarim em escolas bilíngues.
“As crianças estão gostando muito”, relatou a jovem mamãe. “Eles perguntam por que estariam estudando inglês, em vez de mandarim. De fato, a língua chinesa, como idioma estrangeiro, é a língua do futuro”.
O entusiasmo da entrevistada com a China é semelhante ao experimentado pelo governo russo com a viagem de Xi Jinping, após meses de isolamento do regime de Vladimir Putin pelas principais potências ocidentais.
Afinal, Rússia e China – membros do Brics, juntamente com Brasil, Índia e África do Sul – estariam, nas palavras escolhidas por seus próprios meios de comunicação, contestando a hegemonia dos Estados Unidos e promovendo um mundo multipolar.
Xi Jinping chega a Moscou com um importante ativo diplomático: por meio da mediação chinesa foram restabelecidas as relações diplomáticas entre o Irã e a Arábia Saudita. Uma prova, segundo Pequim, de que o mundo pode ser um pouco melhor com a ação de países que compõem o chamado Sul Global.
A expressão em si, Global South, tem sido recebida com ironia por meios de comunicação ocidentais. Segundo o jornal francês Le Monde, trata-se de uma maneira de ver o mundo “em oposição aos países ocidentais”.
A própria visita de Xi tende a ser interpretada nas capitais ocidentais, de Washington a Paris e Londres, como a renovação de uma aliança entre dois líderes autoritários, dispostos a lutar por uma ordem mundial mais favorável a seus interesses.
As credenciais democráticas de Putin e Jinping podem, de fato, ser questionadas. Especialmente depois do crescente cerco à oposição na Rússia e à unânime recondução ao cargo do líder chinês, após a abolição do limite de dois mandatos até então vigente em seu país.
Mas o aperto de mão dos “queridos amigos”, em Moscou, mostra ao resto do mundo que a solução para os grandes problemas atuais do planeta – entre os quais aparece com destaque a guerra na Ucrânia – não pode prescindir da presença de ambos.
Até aqui o Ocidente e a Rússia parecem dispostos a elevar as suas apostas na guerra. As negociações de paz, segundo se pode interpretar de recentes declarações dos dois lados, poderiam esperar até que os combates em terra garantissem a um ou a outro a vantagem esperada antes do início das conversas.
As sanções impostas à Rússia pelos Estados Unidos e pela União Europeia não têm sido suficientes para interromper os conflitos. Até porque o governo russo ainda conta com o comércio com a China e com países do tal Sul Global, que não querem tomar um lado.
A própria China já se apresentou como candidata a promover um acordo de paz. O gesto foi recebido com simpatia por Ucrânia e Rússia, mas visto com desconfiança pelo Ocidente, para quem o governo chinês seria, na verdade, um aliado de Moscou.
À China, porém, não interessa essa guerra. Porque prejudica o bom andamento à economia mundial, necessário ao seu próprio crescimento, e porque Pequim vê com preocupação a mesma expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) apontada por Moscou como principal motivo para sua “operação militar especial” na Ucrânia.
Os principais estrategistas de Pequim já colocaram em seus radares os mais recentes movimentos de dirigentes da Otan no Sudeste Asiático, onde estariam preparando terreno para novas alianças militares de contenção da China.
Mas como lidar com interesses tão contraditórios como os que se observam na guerra da Ucrânia? A interrupção imediata dos conflitos seria um bom começo. Mas há dúvidas sobre o que significaria, nos planos de paz de Pequim, o “respeito à integridade territorial” como segundo passo no processo de paz.
Os territórios ocupados neste ano pela Rússia seriam devolvidos à Ucrânia? E como ficaria a situação na Crimeia, ocupada há nove anos?
O encontro dos dois líderes em Moscou pode ser o cenário para que os governos de Rússia e China trabalhem em busca de uma sintonia fina a respeito do tema. E, caso a China consiga aprofundar a sua proposta de paz, ela possivelmente conseguiria conquistar apoio de países importantes que se mantêm neutros até o momento.
Essa é a aposta do insuspeito professor norte-americano Jeffrey Sachs, do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Columbia. Para ele, entre esses países poderão estar o Brasil, a Índia e a África do Sul, integrantes do mesmo Brics de Rússia e China.
Os países do Brics, comparou, representam 32% da economia mundial, enquanto as nações mais ricas do mundo, integrantes do G7, respondem por 31%. Seriam, portanto, aliados importantes de um processo de paz.
Para Sachs, três passos poderiam ser importantes para o avanço das negociações: a neutralidade da Ucrânia, sem ingresso na Otan; a manutenção pela Rússia da Crimeia, considerada essencial para a segurança nacional russa por sua base naval; e a busca de autonomia administrativa para a região de Donbass, no leste da Ucrânia.
A visita a Moscou de Xi Jinping pode fazer avançar o debate sobre esses e outros temas. “A China quer que essa guerra acabe”, disse Sachs em recente visita ao Centro de Relações Internacionais da Sérvia. “Mas os chineses querem que se levem em conta as preocupações dos russos com sua própria segurança”.
No momento, esses argumentos encontram pouca receptividade junto às principais potências ocidentais. Nesse caso, porém, seria importante que Washington e seus principais aliados apresentem suas próprias ideias para um processo de paz. Uma guerra prolongada não parece muito atraente para o resto do mundo.
Marcos Magalhães. Jornalista especializado em temas globais, com mestrado em Relações Internacionais pela Universidade de Southampton (Inglaterra), apresentou na TV Senado o programa Cidadania Mundo. Iniciou a carreira em 1982, como repórter da revista Veja para a região amazônica. Em Brasília, a partir de 1985, trabalhou nas sucursais de Jornal do Brasil, IstoÉ, Gazeta Mercantil, Manchete e Estado de S. Paulo, antes de ingressar na Comunicação Social do Senado, onde permaneceu até o fim de 2018.