O filho cuidadoso pergunta: “Pai, marcou o check-up?” “OK, depois do carnaval”; a moça vaidosa se olha no espelho, enxerga a gordurinha e jura solenemente: “Depois do carnaval, dieta e malhação”.
Assim é o Brasil. Assim somos nós, brasileiros: tudo começa ou deveria começar depois do Carnaval. Mais que um calendário formal, é um estado de espírito. A gente não sabe onde começa nem quando termina.
Institucionalmente, Brasil, também, começa e recomeça: pior ou melhor? Eis a questão. O notável pensador Edgar Morin com 102 anos de idade, buscou sempre a “consciência da complexidade” e, ao completar um século de existência nos legou o livro Edgar Morin – Lições de um século de vida (Ed. Bertrand Brasil, 2021, RJ) no qual aproveita o jorro de lucidez de Rita Levi-Montalcini, Prêmio Nobel de Medicina, 1986, na abertura do capítulo “Saber Viver”: “Dê vida a seus dias em vez de dar dias à sua vida”.
Pensando bem, não estamos diante da banalidade da autoajuda, mas de um método de encarar a existência. Segue a questão: começamos melhor ou pior do que estávamos antes do carnaval? E a visão prospectiva? Não faltarão a credibilidade de institutos de pesquisas para medir opiniões, sentimentos e, na mesma proporção, analistas com experiência e credibilidade.
No quadro atual, duas circunstâncias se somam: um novo ano e alternância/continuidade do poder com as respectivas “heranças malditas/benditas”. Nas avaliações, devem prevalecer opiniões significativamente otimistas quanto à dimensão pessoal\familiar e, positivamente, cautelosas quanto à gestão e popularidade do Presidente Lula.
Independente do rigor analítico, o tempo será, sempre, o senhor da razão.
Por enquanto, a cena política, segue tensa e inflamável, dentro e fora do governo.
A tensão externa é o rescaldo das barbaridades cometidas contra a democracia associado à reaglutinação de forças à direita para o embate extremista. Internamente, a tensão é inflamável porque se alimenta da reoneração dos combustíveis, a partir de primeiro de março, exposta na fratura pelo conflito de “alas” que dividem o governo política e ideologicamente.
O mais ingênuo observador dos fatos sabia da impossibilidade de conciliar o conflito distributivo instalado: os que querem pagar menos impostos e os que defendem uma solução que atenda aos objetivos do arcabouço macroeconômico centrado na redução do déficit das contas do ano em curso, em 1% do PIB, sinalizando uma gestão fiscalmente responsável. Em tempo: taxação da exportação do óleo cru, como a hipocrisia, é a homenagem que o vício presta à virtude.
Não havia alternativa. Ou a reoneração dos combustíveis ou a carbonização do Ministro da Fazenda com graves incertezas para os rumos da economia.
Neste sentido, as correntes de opinião em choque dentro do governo refletem tendências bem mais complexas do que as expressões “ala política” e “ala econômica”: transcendem medidas pontuais e revelam visões de mundo conflitantes na política e na economia.
De outra parte, vai além do saudável debate congressual e deságua na luta hegemônica que divide o PT e impõe ao Presidente da República decisões que exigem, sobretudo, moderação e manutenção do governo coeso frente à desafiadora agenda a ser enfrentada. A imediata concessão à popularidade comprometeria o alicerce da credibilidade.
Nunca é demais repetir: o futuro do Brasil não se resume às alas identificadas pela superficial etiqueta do que é “econômico” e do que é “político”; menos ainda por uma peleja diária que aprofunda a radicalização entre vencidos e vencedores. O Presidente sabe que a harmonia das alas no ritmo dos consensos, sem mortos e feridos, é o ambiente saudável da governança.
O “fogo amigo”, a que está submetido o Ministro Haddad, é uma invenção semântica que encobre a infidelidade: a falsificação de todas as virtudes. Malignas e viciantes, as labaredas do “fogo amigo” devoram a viabilidade de uma agenda estruturadora.
Cada debate sobre as medidas governamentais não são “rounds” de luta de boxe. Governar não é um permanente exercício de pugilismo. Governar é apontar rumos e somar forças em direção a um destino desejável.
A propósito, o Ministro da Fazenda foi salvo do nocaute pelo próprio Presidente. A “ala política” não desgruda do populismo, da demagogia, do intervencionismo estatal e do dogmatismo ideológico. Diante de uma agenda de urgências, quanto mais demoram, reconhece Lula, mais “caras” ficam as soluções.
O Presidente tem experiência suficiente para enfrentar adversidades. Porém, não disfarça que é extremamente sensível à aprovação popular. Ministro da Fazenda não garante um “real” de popularidade: o conjunto da obra, sim.
Isso a gente só vai saber depois do carnaval.
Gustavo Krause foi ministro da Fazenda