metropoles.com

Crise coloca em risco governabilidade da França (por Marcos Magalhães)

Em 2017, a Frente Nacional havia obtido apenas oito cadeiras na Assembleia Nacional. Agora, serão 89

atualizado

Compartilhar notícia

macron
1 de 1 macron - Foto: null

A velha Assembleia Nacional da França, onde nasceram os conceitos de esquerda e direita, vai ser agora local privilegiado para se observar como o novo cenário global, marcado por guerra, pandemia e crise econômica, afeta uma das mais importantes democracias do Ocidente.

O segundo turno das eleições legislativas, ocorrido no domingo, negou ao presidente reeleito Emmanuel Macron o que ele mais precisava: maioria absoluta na Assembleia. Além disso, indicou forte crescimento dos dois extremos do campo político.

A abstenção permaneceu muito alta no segundo turno: aproximadamente 54% dos eleitores deixaram de ir às urnas, nesse quase começo de verão no Hemisfério Norte, onde as temperaturas já ultrapassam os 40 graus nas regiões Sul e Sudoeste da França.

Os resultados das eleições prometem debates igualmente acalorados pelos próximos anos. O movimento Ensemble, de Macron, obteve apenas 246 vagas na Assembleia Nacional. Precisaria de 289 para garantir a maioria absoluta. Em 2017, foram 350 deputados eleitos.

A Nova União Popular, Ecológica e Social (Nupes), que une os partidários de Jean-Luc Mélenchon a socialistas e ecologistas, obteve 142 cadeiras e se torna a segunda maior força política da França. Das 142, 75 foram destinadas ao movimento A França Insubmissa, de Mélenchon, enquanto 27 ficaram com os socialistas.

A comparação com 2017 mostra como mudou o perfil da esquerda. Naquele momento, o movimento de Mélenchon, considerado de extrema esquerda, havia obtido apenas 17 cadeiras. O Partido Socialista, que já perdia espaço, elegia 28 deputados.

O tsunami eleitoral deste 2022, porém, ocorreu à direita. Em 2017, a Frente Nacional havia obtido apenas oito cadeiras na Assembleia Nacional. Agora, serão 89. Um resultado histórico para a extrema direita, que já se prepara para a sucessão presidencial de 2027.

Governabilidade

O que estava em jogo, nesse segundo turno das eleições legislativas, era a própria governabilidade da França. Macron conseguiu superar a extrema direita nas eleições presidenciais. Mas ele terá pela frente uma Assembleia hostil e iniciará seu segundo mandato sob pressão.

Uma vez que Macron obteve maioria apenas relativa, ele terá pela frente os desafios de negociar sua pauta de prioridades e de governar um país extremamente dividido. Já parece parte de um passado distante o período em que governos moderados, de direita e de esquerda, se alternavam no Palácio do Eliseu.

As múltiplas crises que afetam boa parte da Europa parecem ter estimulado o crescimento de movimentos políticos mais ligados aos extremos. Mais conhecida, embora ainda não tão intensa, já era a ascensão da Frente Nacional, vitaminada pelo crescente sentimento de rejeição a percebidas ameaças de fora do país – especialmente imigrantes de países islâmicos.

Agora a novidade chega pela esquerda. O movimento França Insubmissa, de Mélenchon, conseguiu atrair socialistas e ecologistas para formar a Nupes – uma união ainda marcada por diferenças de prioridades, mas que desponta como nova segunda força política do país.

Prioridades

O programa da Nupes foi ambicioso. Propôs o estabelecimento de uma Sexta República, a partir da elaboração de uma nova Constituição. Sugeriu ainda restaurar o direito à aposentadoria aos 60 anos e restabelecer o imposto sobre grandes fortunas e taxar grandes poluidores.

A pauta ambiental da Nupes é extensa. Inclui a supressão de linhas aéreas quando a viagem alternativa em trem durar menos de três horas. Também prega a instalação de estacionamentos obrigatórios para bicicletas junto a estações de trem e serviços públicos.

Os parlamentares que apoiam Emmanuel Macron também apostaram em uma ampla pauta ambientalista – mas diferente da apresentada pela esquerda. Defenderam, por exemplo, a construção de seis centrais nucleares de “nova geração”.

As mudanças no setor de energia têm papel importante na agenda macronista. Entre as prioridades estão a implantação de 50 parques eólicos no mar até 2050, a construção do primeiro avião de baixo carbono e o projeto de se tornar líder em hidrogênio verde.

O grupo ligado ao presidente reeleito, porém, também cuidou de incluir em sua agenda temas caros à direita. Os gastos militares, por exemplo, deverão alcançar 2% do Produto Interno Bruto. E deverá ser criada uma “Força de Fronteiras”, encarregada de expulsar estrangeiros que “perturbam a ordem pública”.

O programa presidencial de Macron continha uma guinada à direita em termos de segurança. O presidente propôs “continuar a fazer recuar o Islã radical, por meio do fechamento de associações e mesquitas radicais e escolas clandestinas”.

As medidas contra imigrantes já eram propostas pela Frente Nacional. Em seu programa para as eleições legislativas, o partido sugeriu rever a Constituição, para “suprimir a autorização de permanência” aos que não tenham trabalhado durante um ano no país.

Identidade

Temas como a defesa da identidade francesa, em reação à crescente influência islâmica, estão entre os motivos que levaram ao crescimento da direita radical e à própria guinada à direita do presidente reeleito.

Os resultados das eleições presidenciais e legislativas refletem conflitos que dividem a sociedade francesa e motivam grandes debates nas universidades e nos meios de comunicação. Esses debates são analisados no livro A Guerra das Ideias, escrito pela jornalista e ensaísta Eugénie Bastié, do jornal Le Figaro, e publicado há um ano.

A partir de fenômenos como a crise econômica, os atentados islâmicos, o crescimento da imigração e a ascensão dos populismos e das políticas identitárias, analisa a jornalista, “as posições se endureceram, os clãs se reformaram, e se multiplicaram as discussões violentas sobre temas como identidade, laicidade, Islã, terrorismo, bioética e feminismo”.

Ela recorda que, nos anos 1990, houve uma relativa calma nos debates políticos, após a queda do comunismo e a expansão do liberalismo. Essa “ilusão de consenso”, sublinha, desapareceu nos anos 2000, após os atentados de 11 de setembro, a ascensão dos debates identitários e a crise financeira de 2008.

Em 2009, o então presidente Nicolas Sarkozy lançou o debate sobre o que chamou de “identidade nacional”. E o período entre 2014 e 2017, ao final do mandato do socialista François Hollande, teria sido, na opinião da autora, o grande momento dos conservadores.

A primeira eleição de Emmanuel Macron, em 2017, conteve a onda da extrema direita. Mas ele próprio, ressalta Eugénie, acabou por admitir o insucesso de suas ideias liberais e por adotar um discurso baseado na soberania e na independência nacional e na crítica ao “Islã radical”.

Os próximos cinco anos serão determinantes para o futuro político da França e, em certa medida, da democracia na Europa Ocidental. O jovem presidente reeleito precisará buscar suas melhores qualidades para lidar com uma conjuntura política tão adversa.

 

Marcos Magalhães escreve no Capital Político. Jornalista especializado em temas globais, com mestrado em Relações Internacionais pela Universidade de Southampton (Inglaterra), apresentou na TV Senado o programa Cidadania Mundo. Iniciou a carreira em 1982, como repórter da revista Veja para a região amazônica. Em Brasília, a partir de 1985, trabalhou nas sucursais de Jornal do Brasil, IstoÉ, Gazeta Mercantil, Manchete e Estado de S. Paulo, antes de ingressar na Comunicação Social do Senado, onde permaneceu até o fim de 2018.

Compartilhar notícia