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Correio de guerra e o anacronismo militar (por João Bosco Rabello)

Os golpes clássicos com tanques nas ruas prescreveram, o que torna o desfile na Esplanada uma ópera bufa sem concorrência na história

atualizado

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Michael Melo/Metrópoles
Intervenção Militar
1 de 1 Intervenção Militar - Foto: Michael Melo/Metrópoles

Em outros tempos, que não podem se repetir senão como farsa, a rejeição ao voto impresso pela Câmara equivaleria ao discurso de 68 do deputado Márcio Moreira Alves que resultou na edição do AI-5. O Legislativo estava igualmente advertido para os riscos do enfrentamento com o governo militar.

As diferenças hoje, no entanto, são muitas. O Brasil é continental em um mundo globalizado pela informação instantânea e por interesses comerciais e geopolíticos que alteram o conceito clássico de soberania, como ainda o pensa a velha guarda militar.

Por extensão, golpes clássicos com tanques nas ruas também prescreveram, o que torna o desfile na Esplanada uma ópera bufa sem concorrência na história – surpreendente por tosca, analógica por atraso.

A ausência de convidados de significação institucional, como os ministros de tribunais superiores e parlamentares, no Palácio do Planalto em moldura bélica, já sinalizava para a resposta pelo voto à mais atrevida provocação antidemocrática de Bolsonaro.

Não poderia ser diferente ante uma versão cínica e insultante de que todo o aparato bélico tinha a singela motivação de entregar ao presidente da República, em mãos, um convite (impresso) para uma manobra usual das Forças Armadas em Formosa, município goiano fronteiriço a Brasília.

O Brasil consegue essas proezas. Ao tempo em que anuncia a privatização dos Correios, o Estado institui a figura do carteiro militar que carrega correspondência em um tanque de guerra. Com apoio de carros anfíbios da Marinha no planalto árido, de umidade inferior a 30%. A cena flagra comandantes militares com um pé no passado.

O que precisa ficar mais claro é a extensão do sonho de generais de reescrever a história de 64 que julgam distorcida em uma versão consolidada pela esquerda. Ao que consta, o projeto original era fazê-lo pela via democrática, com eleições de militares em todas as instâncias legislativas, na esteira de um fraco desempenho da esquerda no poder.

Por aí, o projeto seria, pelo menos, de médio prazo. Na medida em que a eleição de Bolsonaro foi se mostrando crível, viram no capitão outrora expelido o atalho para encurtar a distância e abreviar a chegada ao poder central. Nem todos apostaram na via mais fácil, porém o embarque ocorreu e, agora, o desembarque arrependido esbarra na hierarquia – fundamento militar ausente na política.

Do que se vê, há generais aparentemente dispostos a confirmar a versão de 64. Um dos idealizadores dessa releitura, o general Villas Boas, colaborou para reeditar o comportamento de interferência na política, com duas mensagens públicas em que pretendeu intimidar o Supremo Tribunal Federal em véspera de julgamentos envolvendo o ex-presidente Lula.

Na primeira advertiu a Suprema Corte; na segunda, ao negá-la como ameaça, a reafirmou. O ministro da Defesa, Braga Neto, que exerce o cargo como se fosse comandante das Forças, repete Villas Boas, em escala maior, com muitos tons e tanques acima.

Enquanto isso, com o desgaste eleitoral de Bolsonaro e as sucessivas vitórias judiciais o fantasma reabilitado de Lula vai se materializando qual um reencarnado do qual se esperava um sumiço de mil anos. Lula está de volta na mesma encarnação em que os generais de ontem operam na cartilha amarelada dos anos 70.

O paradoxo é que para ter um vislumbre da derrota eleitoral de Lula em 2022, é preciso respaldar Bolsonaro até o fim com o objetivo de manter a polarização dos extremos – uma estratégia que precisa ser combinada com o eleitorado, cuja maioria expressiva rejeita nas pesquisas o presidente da República.

Os militares se meteram em uma situação análoga a de um navio à deriva em alto-mar: não consegue rumo, não é atacado, mas o tempo conspira contra o resgate sem perdas. Já são memes na Internet onde trafegam hoje os cartuns dos impressos de ontem que, como as cédulas eleitorais, são agora digitais.

Tendo por referência a imagem das Forças Armadas, o naufrágio está distante ainda, mas é preciso encontrar uma forma de salvamento, que não são os carros anfíbios da Marinha sob o asfalto quente de Brasília – a mais de mil quilômetros do mar.

Legislativo e Judiciário, com suas ausências ontem para receber o carteiro fardado, e a derrota do voto impresso – alvo da intimidação militar –, avisaram que não serão os salva-vidas. Estes só podem ser encontrados dentro das próprias Forças Armadas de onde veio o sinal verde para as velas ao mar.

 

João Bosco Rabello escreve no Capital Político. Ele é jornalista há 40 anos, iniciou sua carreira no extinto Diário de Notícias (RJ), em 1974. Em 1977, transferiu-se para Brasília. Entre 1984 e 1988, foi repórter e coordenador de Política de O Globo, e, em 1989, repórter especial do Jornal do Brasil. Participou de coberturas históricas, como a eleição e morte de Tancredo Neves e a Assembleia Nacional Constituinte. De 1990 a 2013 dirigiu a sucursal de O Estado de S. Paulo, em Brasília. Recentemente, foi assessor especial de comunicação nos ministérios da Defesa e da Segurança Pública

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