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A volta da violência

Dados de 2020 destroem o mito de que o governo Bolsonaro priorizaria a segurança

atualizado

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Jasmin Merdan/Getty
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1 de 1 assassinatos-de-crianças - Foto: Jasmin Merdan/Getty

Editorial de O Estado de S. Paulo (19/7/2021)

Em 2020, não bastassem as centenas de milhares de mortes causadas pelo vírus (e facilitadas pela desídia do governo), os brasileiros viram aumentar as mortes causadas por seus compatriotas. Segundo o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, após 2017, o ano mais mortífero da história, as mortes violentas intencionais caíram por dois anos e em 2020 voltaram a crescer, na taxa de 4,8%.

Entre os fatores sugeridos pelo Fórum estão o rearranjo do crime organizado; o desinvestimento e os conflitos das polícias; e, também aqui, a inépcia do governo.

Das 27 unidades federativas, 16 registraram aumento, especialmente no Nordeste, onde houve alta em todos os Estados, na média de 21%. A causa mais plausível é a reorganização das disputas territoriais do crime organizado.

O cerco ao Primeiro Comando da Capital (PCC), por meio da interrupção de rotas do tráfico, isolamento das lideranças nos presídios e bloqueio de recursos, pode ter desencadeado conflitos por novas lideranças e rotas. Especula-se que o enfraquecimento do PCC, e de sua rota tradicional da droga do Paraguai e da Bolívia rumo aos portos do Sudeste, tenha levado ao fortalecimento do Comando Vermelho na rota amazônica, por onde a droga da Colômbia e do Peru escoa até os portos do Nordeste.

O ano também foi marcado pela instabilidade das forças policiais. Quase 30% dos policiais foram vitimados pela covid, o que debilitou o policiamento. O País teve uma redução de 1,7% dos gastos com segurança, com cortes expressivos nos municípios.

Os dados escancaram mais um estelionato eleitoral de Jair Bolsonaro, demolindo o mito de que seu governo priorizaria a segurança.

Bolsonaro herdou do governo Temer um cenário de queda da violência, recursos do programa de repasse de verbas da Loteria para a segurança pública e o projeto do Sistema Único de Segurança Pública (Susp). Mas “tudo o que foi construído em 2018 foi negligenciado pela gestão Bolsonaro”, aponta o relatório. “No plano político, o presidente não está preocupado com a cooperação ou eficiência técnica do trabalho policial. Ao contrário, tem estimulado a ampliação de padrões operacionais pautados no confronto e na guerra (ampliação do excludente de ilicitude, elogios a operações que têm como resultado a morte).” Bolsonaro também estimulou a radicalização ideológica de policiais e o confronto com governadores.

Mesmo iniciativas positivas de seu próprio governo, como o projeto Em Frente, Brasil, que visava a reduzir a violência nos municípios com mais mortes – o que é pertinente, dado que os 138 municípios com letalidade acima da média nacional concentram 37% dos assassinatos –, foram descontinuadas devido à rinha política de Bolsonaro com o ex-ministro da Justiça Sérgio Moro.

Nada se fez para concretizar a razão de ser do Susp de dar mais eficiência e integrar as ações dos entes federados. Ao contrário, o Sistema foi instrumentalizado para concentrar poderes, estabelecer linhas diretas entre o governo federal e as polícias estaduais e fabricar dossiês de inteligência contra dissidentes.

O Ceará é o próprio emblema da desgraça. Em 2017, a guerra entre facções aterrorizou a população e levou o Estado ao recorde de assassinatos. Nos anos seguintes, o Estado foi o que mais reduziu as mortes. Mas, em 2020, o motim da PM, que não contou com uma só palavra de reprovação de Bolsonaro (e muitas de aprovação das hostes bolsonaristas), deixou a população refém dos criminosos e deu margem à ofensiva do Comando Vermelho sobre os territórios da facção rival, os Guardiões do Estado. A mortalidade explodiu: 75% em relação a 2019.

A única política de segurança pública do governo, o armamento da população, efetivamente avançou – e com ela, a violência. Em 2020, o aumento de armas nas mãos de civis foi 97% maior que em 2019. O controle e a fiscalização foram debilitados por decretos presidenciais, e entre 2019 e 2020 o uso de armas de fogo nos assassinatos cresceu de 72% para 78%.

O vírus da violência voltou a se espalhar, e um de seus maiores disseminadores, se não o maior, está no Planalto.

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