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A criminalidade é líquida (por Felipe Sampaio)

A receita de Medelín é promover o convívio e o bem-estar, direcionando investimentos e serviços públicos de alto padrão para os mais pobres

atualizado 23/03/2023 0:48

Jorge Melguizo é um arquiteto colombiano nascido em Medelín, na favela Comuna 13, a mais oprimida pelo crime organizado nas décadas de 1980 e 1990. Mesmo assim, foi Secretário de Cultura e Secretário de Desenvolvimento Social da sua cidade, considerada a mais violenta do mundo quando ali reinava o traficante Pablo Escobar (e os paramilitares que o sucederam).

Sendo um frasista espirituoso, é autor de verdadeiros lemas do tratamento pacífico para a violência. Em um deles, registrou que “o oposto da insegurança não é a segurança, mas sim a convivência”, referindo-se ao fato de que a presença da polícia nem sempre é suficiente para desfazer a sensação de medo do crime.

Sendo um dos idealizadores e gestores das ações de urbanismo social que transformaram Medelín em uma cidade próspera e segura, Melguizo e os prefeitos da época orientaram-se por outra de suas regras fundamentais, “o melhor para os mais pobres”.

Nesse sentido, o arquiteto de riso franco e generosidade larga é irredutível ao afirmar que “não existem bairros violentos, mas sim processos de violência que vulnerabilizam lugares e pessoas, geralmente os pobres”.

Com isso, deixa claro que as favelas não podem ser tratadas como território inimigo, passíveis de operações militarizadas. O Brasil se reaproxima de seu pensamento ao reativar políticas transversais de segurança pública cidadã, como o Pronasci e o Susp.

O exemplo de Medelín inspira iniciativas de pacificação desde casos como os COMPAZ do Recife (Brasil) até as Utopias de Iztapalapa (México). O segredo do êxito de tais experiências pode ser traduzido por outra expressão que ouvi de Melguizo em nossa conversa mais recente: “Os governos são rijos, a criminalidade é líquida”.

A frase é uma referência ao filósofo polonês Zigmunt Bauman (Modernidade Líquida, 2000), que chamava a atenção para a individualização das sociedades contemporâneas e a fragilização das relações humanas, sob um modelo econômico baseado em mecanismos fluidos e valores fugazes.

Ninguém melhor do que um arquiteto para desvendar a liquidez no design da criminalidade moderna. A sedução dos ícones consumistas, potencializada pelas redes digitais e turbinada pela desigualdade social, resulta em uma fluidez inalcançável pelos mecanismos sólidos do Estado tradicional, quando se trata de segurança pública.

A receita de Medelín é promover o convívio e o bem-estar, direcionando investimentos e serviços públicos de alto padrão para a população mais vulnerável nas áreas mais pobres. Nas palavras de Jorge Melguizo, não basta construir “obras de pobre em lugares pobres”, tem que fazer “obras de rico para os pobres”.

 

Felipe Sampaio: Ex-secretário executivo de Segurança Urbana do Recife; foi assessor dos ministros da Defesa e da Segurança Pública; cofundador do Centro Soberania e Clima; atualmente é diretor de gestão e integração de informações da Secretaria Nacional de Segurança Pública.

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