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A vida depois de… passar num concurso e deixar de catar latinhas

A história de Marilene Conceição Silva virou símbolo de superação e força pelo Brasil. Há 15 anos, arrecadava R$ 50 por mês catando latinhas e revendendo no Lixão da Estrutural. Com o dinheiro, sustentava o marido e os quatro filhos. Em 25 dias mergulhada em livros, mudou o seu destino e o da família e passou num concurso com salário de R$ 1,4 mil

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Felipe Menezes/Metrópoles
Marilene Conceição Silva
1 de 1 Marilene Conceição Silva - Foto: Felipe Menezes/Metrópoles

Quinze anos atrás, Marilene Conceição Silva, hoje com 42 anos, era uma dessas pessoas invisíveis com as quais topamos todos os dias. Sobrevivia catando latinhas e vendendo, a peso, todas as sextas-feiras no Lixão da Estrutural. Os R$ 50 que juntava da venda das latinhas — com a inflação, o valor corresponderia a R$ 136 — sustentava aos trancos e prateleiras vazias o marido, desempregado na época, e os quatro filhos pequenos do casal. Nem todos os dias tinha comida na mesa. Hoje, o valor no contracheque chega a 180 vezes a renda antiga.

Marilene nasceu no DF mesmo. Por causa de uma má-formação, tem a fala fanha e um lado do corpo levemente comprometido. O carisma, em compensação, segue intacto. Morou em Ceilândia até os 6 anos, depois se mudou com a avó para Brazlândia. Quando casou, aos 17 anos, voltou às origens.

Como empregada doméstica, ganhava poucos reais a mais que um salário mínimo: R$ 136 em 1999. Com quatro anos de Plano Real, o valor comprava muito mais do que dá conta hoje. “O dinheiro valia mais. Garantia as compras de mercado do mês”, lembra. O salário pagou também um curso de técnico de enfermagem, que fazia aos finais de semana. Por causa do lábio leporino, nunca arrumou um emprego na área. Os colegas de curso, sim.

As latinhas surgiram na vida de Marilene quando ela perdeu o emprego como doméstica. “Eu faltava muito. Com os filhos, já não conseguia ir. Uma hora um estava doente, depois o outro. Minhas patroas me elogiavam, mas era ruim mesmo para elas. Elas precisavam de mim e eu não estava lá”, conta.

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Na mesma época, comprou um carrinho de mão para levar os filhos para a escola – um investimento para facilitar a tarefa de carregar nos braços quatro crianças inquietas pela rua. Um dia, na volta, começou a reparar nas latas jogadas pela rua e se lembrou da sua mãe, que tinha mania de catar latinhas pelas festas de família para revender. Foi a salvação para as mesas sempre vazias.

Isso, e as faxinas “ocasionais” que fazia na casa de colegas e vizinhos. “Limpava o chão ou arrumava a cozinha em troca de meio saco de arroz. A pessoa não pedia nada não, eu é que começava a fazer e depois pedia uma ajuda”, lembra. Com o tempo, passou a faltar água e luz em casa. Marilene cozinhava na lenha para os filhos. Racionava pão e leite e depois contava com a merenda da creche para completar as refeições do dia. Envergonhada da situação, escondia tudo da mãe.

Não entendo quem faz dieta e passa fome por vontade, não. Comer direito e saudável, tudo bem. Mas passar fome tendo dinheiro para comer eu não entendo. Fome dói.

Marilene Conceição Silva

Fome dói
Por causa da má-formação, Marilene tinha Passe Livre no ônibus. Todos os dias saía de casa, na Ceilândia, para procurar emprego no Plano Piloto. Batia nos órgãos públicos, iguais ao que ela bate ponto hoje, perguntando se não precisavam de alguém na limpeza. Aproveitava para tomar café e bolachas nas recepções e enganar a fome. Na rodoviária, passava na banca para ler o jornal pelo lado de fora, para ver se via algum anúncio de emprego. Terminava a jornada na Agência do Trabalhador, com a notícia de que nenhuma vaga disponível se encaixava no seu perfil. “Era desesperador”, conta.

Os irmãos de Marilene sempre foram estudiosos. Já se dedicavam aos concursos quando Marilene trabalhava para sobreviver. No pouco tempo que lhe sobrava, aprendia português e informática pelas apostilas antigas deles. Chegou até a fazer uma prova, mas tinha tanta fome que as letras embaralhavam na sua frente. Não conseguiu terminar. “Errei coisas que eu sabia.”

Um dia, num mutirão de cirurgias, foi chamada para operar o palato, que lhe atrapalhava a fala e a respiração por causa do lábio leporino. A mãe fez uma proposta: durante o pós-operatório, cuidaria dos netos para que ela descansasse e ela poderia ficar hospedada na sua casa. A cirurgia coincidiu com a abertura de um concurso para técnico judiciário no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT). As irmãs tinham uma apostila. Marilene tinha vontade de mudar de vida.

Felipe Menezes/MetrópolesA inscrição custava R$ 25. Pediu dinheiro emprestado de R$ 5 em R$ 5 para completar a quantia. Recorreu a tios, amigos, conhecidos. Entre as inscrições e a prova, foram 25 dias. Marilene montou um esquema de guerra com as irmãs para estudar. Às 8h já estava em frente aos livros. Fazia uma pausa às 12h para almoçar. Retomava os estudos às 14h e ia até 23h30. Quando as irmãs iam dormir, continuava mergulhada sozinha nos estudos até 2h. “Quando uma de nós desanimava, a gente dizia ‘pensa no auxílio-creche!’. O único dia de folga foi para uma campanha de oração na igreja”, lembra.

Dias depois da prova, Marilene tinha uma consulta de retorno da cirurgia no Hospital Regional da Asa Norte. “Vim no ônibus pensando que teria que voltar para a minha rotina, para minha casa, minhas latinhas”, conta. No caminho, uma das irmãs viu que o resultado do concurso tinha saído. Mais de 100 mil candidatos tinham tentado a mesma sorte que Marilene. Quando viu seu nome no jornal, gritava tanto que o motorista do ônibus pensou que ela tivesse sofrido algum acidente e se machucado.

Nessa época, a ex-catadora já esperava o quinto filho. Estava grávida quando fez a prova, mas não sabia. Teve um parto difícil num domingo. Na quarta-feira seguinte deveria se apresentar e tomar posse da sua vaga. Assinar o documento que faria sua renda pular de R$ 50 para R$ 1.423. A médica disse que não a liberaria. Que ela estava de resguardo e não poderia deixar o menino sozinho no hospital.

Disse para ela que eu precisava do dinheiro para sustentar meus filhos. Que se eles não tivessem comida e educação, um dia acabariam virando bandidos e assaltariam uma pessoa como ela na rua.

Marilene Conceição Silva

A médica liberou Marilene com a condição de que às 18h30 ela estivesse de volta. Por causa do trânsito, chegou atrasada ao hospital. “A médica já tinha chamado a polícia dizendo que eu tinha abandonado meu filho. Não estava nem aí. Meu filho estava bem e eu estava empossada”, lembra.

Felipe Menezes/MetrópolesQuando recebeu o primeiro salário, foi até o fórum questionar o seu superior, que ainda nem conhecia — ela estava de licença-maternidade. “Caiu muito dinheiro na minha conta e fiquei com medo de usar e não ser meu. Se eu gastasse, não teria como devolver. Fui dizer que estava errado”, conta. Rindo, o supervisor explicou que a quantia estava certa. Com o salário, vinham os benefícios, como o vale-alimentação e o auxílio-creche. “Posso gastar mesmo?”, ela perguntou. “Pode!”, ouviu de volta.

Como tinha feito promessa, entregou o primeiro salário na igreja. O segundo, levou para um passeio no supermercado. Fez uma compra que durou dois meses. Aos poucos, foi comprando geladeira, fogão, um sofá novo – o seu tinha um “buraco enorme”. Fez uma vaquinha com os irmãos e pagou uma faculdade para a irmã caçula. Paga também escola para os cinco filhos. Trocou a Ceilândia por Águas Claras. Não comprou ainda o apartamento porque achou que não compensava.

Ao longos dos últimos 15 anos, inspirou muita gente pelo caminho. “Um dia, fui a Bauru (SP) fazer um tratamento, e uma pessoa começou a correr atrás de mim na rua. Achei que era assalto e saí correndo. Mas ele só queria me contar que passariam um vídeo com a minha história no curso dele aquele dia, e que ele queria me cumprimentar pessoalmente.”

Outro senhor, do Ceará, também a procurou num momento de desespero. Disse que estava desempregado e que a família já passava por dificuldades. Queria estudar para concurso e ter o mesmo final feliz de Marilene. Hoje, ganha um salário ainda maior que o dela. Recentemente, ela inaugurou um canal no YouTube para dar dicas de concurso. Diz que prepara as “aulas” no ônibus, no caminho de ida e volta entre a casa e o trabalho. “Não quero ser famosa. Quero ajudar pessoas como essas, que me procuram”, diz.

No tribunal, é técnica responsável pelos custos finais dos processos. Cursa faculdade de processos penais, mas ainda quer o diploma de direito. Segundo ela, para fazer o melhor que puder no emprego. “Quando passei, as pessoas me diziam que eu estava empolgada porque era o começo, mas que logo viraria esses servidores preguiçosos que não fazem nada. Pois não mudei. Quero fazer o melhor que posso todos os dias. Porque todos os dias eu lembro de onde eu saí”.

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