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Fechamento da Queermuseu revela falta de incentivo à cultura no Brasil

Em 1937, os nazistas inauguraram em Munique uma mostra/propaganda que eles chamaram de “Exposição de Arte Degenerada”. Para eles, toda a produção moderna de arte era ruim. Foram expostas obras de Paul Klee, Oskar Kokoschka, Wassily Kandinsky, Max Beckman, Georg Grosz que, hoje em dia, são reverenciados como alguns dos mais significativos artistas de seu […]

Autor Márcio Tavares

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Em 1937, os nazistas inauguraram em Munique uma mostra/propaganda que eles chamaram de “Exposição de Arte Degenerada”. Para eles, toda a produção moderna de arte era ruim. Foram expostas obras de Paul Klee, Oskar Kokoschka, Wassily Kandinsky, Max Beckman, Georg Grosz que, hoje em dia, são reverenciados como alguns dos mais significativos artistas de seu tempo.

De acordo com os nazistas, o ato de expor a produção modernista tinha o sentido de “revelar os objetivos filosóficos, políticos, raciais e morais e as intenções por trás desse movimento e as forças motrizes da corrupção que representam”, ou seja, desejavam “instruir” a população sobre o que deveria ser apreciado e sobre o que deveria ser condenado e eliminado da arte.

Mais próximo de nossa realidade, durante a vigência dos regimes ditatoriais no Cone Sul, inúmeros casos de repressão a artistas, obras de arte e exposições aconteceram. Alguns dos casos emblemáticos foram o do fechamento e censura à exposição/manifesto Tucumán Arde, na Argentina, e o ataque a tiros de tanque de guerra ao Museu Nacional de Belas Artes do Chile, durante a perpetração do golpe de Augusto Pinochet.

No Brasil, casos como a censura ao 4º Salão de Brasília, ao 3º Salão de Ribeirão Preto e do fechamento da 2ª Bienal da Bahia, inclusive com a prisão de artistas, foram traumáticos e marcaram uma época terrível de repressão à arte.

Analisando esses casos tem-se a impressão de que os atos repressivos contra a arte estariam restritos aos regimes totalitários e autoritários. Entretanto, no último domingo (10/9), fomos surpreendidos pela decisão do Santander Cultural, centro de cultura de Porto Alegre, de encerrar prematuramente a exposição “Queermuseu: cartografias da diferença na arte brasileira”, com curadoria de Gaudêncio Fidelis.

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A equivocada e absurda decisão do centro cultural de cancelar e (auto)censurar a maior exposição já realizada sobre questões de gênero e sexualidade no Brasil e na América Latina derivou de uma campanha difamatória sobre a mostra. Protestos que criaram uma falsa narrativa acerca dos conteúdos em exibição nas redes sociais por grupos conservadores, sob a liderança do Movimento Brasil Livre (MBL).

Para entender o acontecimento, é fundamental compreender a proposta desenvolvida pela curadoria da mostra. A exposição tinha por objetivo refletir sobre as formas de produção de diferença na arte e na sociedade, sobretudo relacionadas com a comunidade LGBT, através da exibição de peças produzidas por 85 artistas, como os brasilienses Antonio Obá, Bia Leite e Christus Nóbrega. Nomes consagrados, por exemplo, Alfredo Volpi, Lygia Clark, Portinari, Pedro Américo e Leonilson também estavam no catálogo.

A exposição apresentava estruturas excludentes de formação do cânone artístico e, com isso, explorava também as formas repressivas que estruturam a relação da sociedade com orientações não heterossexuais. Conformando-se como uma ação fundamental no âmbito da arte que apostava na fricção das sensibilidades e na geração de empatia para a produção de conhecimento, “Queermuseu” mostrou-se surpreendente e inovadora.

A censura e o encerramento abrupto e autoritário de “Queermuseu” demonstra claramente como as discussões sobre sexualidade e gênero afetam a dinâmica dos poderes estabelecidos e comprova a própria fragilidade das estruturas democráticas de nossa sociedade.

Afinal de contas, qual foi a estratégia do MBL e dos demais grupos autoritários para deflagrar uma cruzada moralista contra o próprio direito de existência da exposição? Oportunisticamente aproveitaram o déficit de cultura museal, artística e visual da maioria da população brasileira, para, através de vídeos nas redes sociais, subverter a interpretação das obras de arte. Assim, uma exposição que celebrava a tolerância, a diversidade e o respeito mútuo foi traduzida mentirosamente como uma mostra que incitava a pedofilia, a zoofilia e a moral religiosa.

A patrulha conservadora explorou principalmente a imagem de três das 263 obras em exposição para conformar seu discurso falacioso e preconceituoso. Uma obra de 1994 de Adriana Varejão, que realiza uma frontal crítica ao processo violento de colonização no país, foi retratada ridiculamente pelos fundamentalistas como um incentivo à prática sexual entre humanos e animais; duas pinturas da brasiliense Bia Leite, que se referem a processos traumáticos da infância das pessoas que se identificam com orientações sexuais diferentes das dominantes, foram disparatadamente descritas como um estímulo à pedofilia; e uma pintura de Fernando Baril, que retrata uma figura de Cristo mesclada com a deusa indiana Shiva, recebeu qualificação de injúria religiosa.

A campanha mentirosa orquestrada contra a mostra esteve e está baseada unicamente em uma perspectiva preconceituosa a respeito das sexualidades. Trata-se da negação absoluta da diversidade: eles determinam o que pode ser considerado como arte e impõem quais orientações sexuais podem livremente se apresentar na cena pública.

Em nome da democracia e do sagrado direito de liberdade de expressão é necessário reagir fortemente a esse tipo de arbitrariedade. A tentativa de imposição do que as pessoas não podem ver ou a busca de cerceamento da opinião alheia é autoritária e corrói os fundamentos da democracia. A produção artística demanda a liberdade para seu pleno desenvolvimento.

Márcio Tavares é historiador, curador independente e doutorando em arte na UnB

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