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Odeio filmes de zumbi, mas adoro George A. Romero

“A Noite dos Mortos-Vivos”, primeiro filme do diretor, ainda é uma das maiores obras-primas do cinema

atualizado

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Não sou de fã de filmes de zumbi. Acho que tudo que era transgressor nessa ideia (reformulada por George Romero) foi transformado em um produto histérico e vazio, um meme, uma commodity. Tampouco fico impressionado com os mais moderninhos e descolados (“Extermínio”) ou os hiper-realistas (“Invasão Zumbi”).

Obviamente, também acho assistir à repetição eterna de “The Walking Dead” um martírio. Nem mesmo a maioria dos longas de Romero eu acho grande coisa. Porém, ironicamente, penso que a sua estreia, “A Noite dos Mortos-Vivos” (1968), é a melhor fita de terror de todos os tempos.

Gostaria de me deter, já que é o momento para se pensar a influência do recém-falecido grande cineasta, apenas sobre o primeiro longa. Isso faz toda a diferença. O filme de zumbi tipo splatter (assassinatos grotescos e gore), que se tornou moeda comum nos blockbusters americanos, descende de “Madrugada dos Mortos” (1978) — sua segunda produção zumbi. Ali é que ele se alinha com a estética do “cinema de gênero” que o consagrou. Esse trabalho olha para a hipocrisia social, mas com tintas carregadas, sanguinolência e ultrajes morais escarrados na cara.

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“A Noite dos Mortos-Vivos”, por outro lado, é um filme de sutilezas, cheio de recursos do então jovem “cinema moderno”. Pode-se  dizer que aspira à arte e reflete sua época. Nesse sentido, aproxima-se mais de “Sombras” (John Cassavetes) e “O Beijo Amargo” (Samuel Fuller) do que de “Resident Evil”.

Romero filmou “A Noite dos Mortos-Vivos” com um orçamento minúsculo (US$ 144 mil), em (então já quase abandonado) preto-e-branco, criando forte contraste entre as duas cores. Uma forma de refletir as outras contradições e paradoxos que o filme discute. Apesar de pertencer a uma segunda onda de fitas verdadeiramente independentes do cinema americano (estando dentro do contexto da “Nova Hollywood”), nada parece amador.

O filme é pensado em ângulos oblíquos e inusitados. Editado com perfeito propósito narrativo. Romero alinha cenas dinâmicas, tensas e claustrofóbicas à trilha (à la Bernard Herrmann, que musicava os filmes de Hitchcock) de William Loose. O resultado é, até hoje, de derreter o cérebro. Sempre gosto de pensar que um longa de terror deve ser aterrorizante em sua linguagem, e não necessariamente em seu conteúdo.


“A Noite dos Mortos Vivos” é um dos únicos filmes de terror que bebe diretamente da linguagem moderna. Os inserts à maneira de Eisenstein, a mise-en-scène estilo Cassavetes, a violência psicológica dos primeiros trabalhos de Roman Polanski. Tudo isso converge para uma sofisticação que o gênero splatter raramente exploraria no futuro.

E o conteúdo do filme não é menos impressionante. Ele lança os termos do zumbi moderno: pessoas aleatórias confinadas numa casa de fazenda; a praga ocorre aleatoriamente; e o conflito entre os sobreviventes e não entre os mortos. Porém, além de deflagrar a mitologia da coisa, Romero entendeu, com finíssima ironia, a tensão social da época.

Ben (Duane Jones), um homem negro, é alçado à condição de herói, sobrepujando escroques e lunáticos. Mesmo assim, termina morto “por acidente” por rangers caçadores de zumbis no estado da Pensilvânia. As imagens finais lembram o filme feito de fotografias de Chris Marker, “La Jetée”: as fotos, em intenso granulado, vão nos mostrando como o protagonista é recolhido, juntado a uma montanha de mortos-vivos e incinerado, como nos tempos da KKK. A semelhança entre discurso deste filme e o de “Sem Destino” (ícone da “Nova Hollywood”) não é mera coincidência.

Por fim, os zumbis. É claro que é preciso falar deles. Romero já os pensa com ironia desde a primeira cena, quando (apropriadamente), em um cemitério, o rapaz que finge perseguir a irmã sendo um monstro se torna a primeira vítima do filme. Há, claramente, a noção de que os mortos-vivos são uma metáfora, diferentemente das produções atuais. Mas isso não os torna menos assustadores.

Eles não têm afetações: são discretos e, ao mesmo tempo, absurdos, inexoráveis. Vão crescendo em escala de grotesco até que, quase sem percebermos o percurso, presenciamos um garotinha devorando o pai e a mãe. O diretor nos entrega isso como se fizesse poesia a partir de carne podre.

Romero foi um diretor irregular, mas a grandeza de “A Noite dos Mortos-Vivos” o coloca na posição dos poucos realizadores que chegaram à autoralidade (e aí entram Mojica, Dario Argento, Tsukamoto, entre outros) por meio do terror. Divisor de águas, ele sempre procurou algum tipo de reflexo humano e social em seus filmes, mas os estereótipos do gênero acabaram ficando maiores do que ele. Seu primeiro longa, no entanto, ultrapassa todas essas questões e se mantém intocável como pedra bruta do cinema moderno.

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