Teatro foi a porta de entrada de Renato Russo nos palcos
Vocalista do Legião Urbana integrou peças de teatro de grupo amador e fez apresentações no extinto Galpãozinho (508 Sul)
atualizado
Compartilhar notícia
Quando Renato Russo surgiu diante dos holofotes do sucesso nos anos 1980, era comum adjetivá-lo de “teatral”. Lembro-me de um show na Concha Acústica do Teatro Castro Alves, em Salvador, onde ele trançava as mãos no ar como um redemoinho. Chovia muito e o efeito era poético para a plateia ensopada. Num dado instante, o líder carismático do Legião Urbana jogou-se ao chão e rastejou em círculos. Se fosse hoje, diríamos: “Olha lá, o cara performou”.
A relação de Renato Russo com o teatro é primordial. No livro “O Filho da Revolução”, o escritor e jornalista Carlos Marcelo lança luz sobre o caminho do cantor ao palco cênico, onde o jovem tímido que, aos íntimos falava pelos cotovelos, lançou-se para, posteriormente, vencer as arenas do rock’n’roll.
No grupo amador de teatro da Cultura Inglesa, Renato Russo era ainda Renato Manfredini Jr, que fabulava a existência de uma banda de rock chamada The 42nd St. Band. Nesse “delírio”, dedicava horas na produção de “dramaturgias” sobre a trajetória, o sucesso, a turnê, o perfil dos integrantes e até o signo de cada um, num exercício fantástico de imaginação.
Entrou na companhia para fazer a peça curta e “cabeça” “O Real Inspector Hound”, de Tom Stoppard. Em dois meses de ensaio, comandados pelo professor escocês Iain Bruce, Renato se desenvolve como ator e, na estreia, é aplaudido de pé nas sessões que ocorrem em março de 1978, no Teatro Galpãozinho (508 Sul). Chamado de esquisito pelos colegas de curso, o jovem ganha popularidade nessa experiência, a porta de entrada no palco. Pelo teatro, Renato encontra-se com a plateia, com quem terá um caso intenso de amor e ódio anos depois.
Naquele mesmo ano, já estudando jornalismo no Ceub, Renato encara uma segunda montagem: “A Inspector Calls”, uma das obras mais encenadas do dramaturgo inglês J. B. Priestley. Ao contrário da primeira experiência, o cantor estava em crise na sala de ensaio.
Renato demonstra grande aflição durante os ensaios. Não consegue achar o tom, não sabe como ser convincente no palco, a ponto de fazer o público acreditar que ele era, sim, um homem forte e calado. Queixava-se aos colegas. ‘O personagem não baixou ainda, gente, não sei o que fazer, não baixou, gente, não baixou’.
Carlos Marcelo
Em 18 de dezembro, após duas sessões, Renato estava deslumbrante em cena. Forte e seguro, conduziu a personagem sem sofrimento. Os colegas acreditam que ele achou a chave da personagem quando ficou diante da plateia.
O caminho para o rock envolve Renato daí pra frente. No entanto, em 1982, já roqueiro e vocalista do Aborto Elétrico, ele se dedica a duas empreitadas teatrais: a peça “O Último Rango”, de J. Pingo, e a escrita de uma dramaturgia inédita “A Verdadeira Desorganização do Desespero”, que, recentemente, veio a público na íntegra e tem planos de virar uma encenação organizada pela família.
A peça é um jogo entre o vocalista e o poder, que Renato intuía viver três anos depois, já como astro do rock nacional.
Tive acesso ao texto e me impressiona a relação de força e os recursos formais diversos, adotados por Renato Russo, para montar essa história:
1) A estrutura da narrativa como um espelho, mesmo que distorcido, do drama grego (explicitamente “Prometeu Acorrentado”, atribuído a Ésquilo).
2) Recursos de metalinguagem (o teatro falando do fazer teatral).
3) A natureza ilógica do teatro do absurdo (com personagens trocando de identidades em situação sem aparente sentido e solução).
Na próxima coluna da série “Teatro 061”, vamos falar de J. Pingo e “O Último Rango”.