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Nelson Xavier, um ator que trouxe o Brasil para dentro do peito

No teatro, cinema e tevê, o intérprete foi um dos primeiros a criar tipos convicentes saídos do subúrbio, das fábricas e da malandragem

atualizado

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Eduardo Barroso/Divulgação
nelson xavier e jones de abreu no mitos do teatro brasileiro
1 de 1 nelson xavier e jones de abreu no mitos do teatro brasileiro - Foto: Eduardo Barroso/Divulgação

Era verdade que os olhos de Nelson Xavier marejavam quando ele remexia na experiência de ter vivido Chico Xavier no cinema. Fiquei diante desse momento. Era 20 de julho de 2011 e o ator tinha vindo a Brasília participar do projeto “Mitos do Teatro Brasileiro” (foto em destaque) em homenagem a Plínio Marcos, autor que o marcou profundamente no início da carreira. Falamos naturalmente de Chico e Nelson inundou os olhos de lágrimas.

No set, era tomado por uma emoção tão intensa. Não sabia explicar. Apenas chorava. Até hoje é assim, desse jeito

Nelson Xavier

 

Nelson já estava com câncer quando esteve aqui. Mas evitou falar da doença. Avisou apenas que tinha restrições alimentares. Tinha o andar lento e frágil, mas seguia a rotina de ator e homem transformado pela fé, que respirava o aqui e agora.

No camarim, contou das delícias e dos aborrecimentos de morar em Santa Tereza. A internet não pegava quase nunca. Discreto, elegante e firme nas palavras, transmitia a serenidade dos que não estão em guerra com a morte. Queria a cura, decerto, mas compreendia os encaminhamentos da vida.

A escolha de ir para Uberlândia, a cidade que abriga grandes médiuns e discípulos de Chico Xavier, tinha a ver com a busca do tratamento alternativo. Não era só o químico. Sobretudo, o espiritual. Amigos em comum falavam que o câncer tinha se espalhado, que ele andava cada vez com mais dificuldades, porém, sua fé estava lá firme e do tamanho dos guerreiros.

Nelson Xavier fez um Chico Xavier inesquecível. Atrás desse personagem tão icônico e quase impossível de alcançar, enfileiravam-se tipos que marcaram o teatro, o cinema e a televisão. Em cada uma dessas linguagens, o ator era operário entregue. É interessante que a trajetória do ator foi vivida quase por blocos: a paixão pelo teatro nos anos 1950 e 1960, a descoberta pelo cinema nos anos 1960 e 1970, o estouro na tevê no comecinho dos 1980. A mistura de tudo isso sempre em seu DNA.

Teatro-mãe
O berço era o palco, numa época em que fazer teatro era entender a dimensão holística da missão de ser ator. Nelson fez Escola de Arte Dramática (EAD) nos anos 1950 quando o Brasil tardiamente entrava na modernidade dos palcos. Está na fundação da dramaturgia genuinamente brasileira, que colocou operários e suburbanos no palco.

Com o mítico Teatro de Arena, fez os clássicos “Eles Não Usam Black-Tie”, em 1958; “Chapetuba, Futebol Clube”, de Vianinha”, em 1959; e “Revolução da América do Sul”, de Augusto Boal, em 1960, e o “Testamento do Cangaceiro”, de Chico Assis, em 1961, no qual dividia a cena com Lima Duarte e Milton Gonçalves.

 

Nelson na histórica “Chapetuba Futebol Clube”, de Vianinha

 

Nelson estava entre os melhores nomes de um teatro que se descobria brasileiro e combativo. José Renato, Guarnieri, Vianinha, Lélia Abramo, Flávio Império e Augusto Boal. No comecinho de Brasília, em 1962, esteve aqui na nova capital para apresentar o repertório do Arena, numa cidade ainda cheia de sonhos.

Participou da primeira montagem de “Toda Nudez Será Castigada”, de Nelson Rodrigues, em 1965, com direção de Ziembinski e contracena com Cleide Yáconis.

O seu encontro com Plínio Marcos, o autor que deu voz aos excluídos e marginalizados, foi numa excursão do Arena em Santos. Plínio estava na plateia. Houve um encantamento profundo entre os dois.

 

 

Saímos depois e atravessamos a madrugada conversando. Havia uma magia, um encantamento. Ele vinha do circo, era palhaço e aquilo era um elemento apaixonante

Nelson Xavier

 

Tônia Carrero, Emiliano Queiroz e Nelson em “Navalha na Carne”: peça que irritou os generais

 

O encontro era de vida e de palco. Nelson Xavier transformou-se em produtor da primeira temporada carioca de “Dois Perdidos numa Noite Suja”, em 1967. Substituiu Plínio Marcos (que fazia Paco) e encantou público e crítica. Depois, fez o primeiro Vado, de “Navalha na Carne”, estapeando Tônia Carrero em cena, na montagem de 1968, que deixou os generais da ditadura de cabelo em pé.

Nelson em “Os Fuzis”, de Ruy Guerra

 

As duas peças viraram filmes, com a direção de Braz Chediak, e ele parecia perfeito para a tela grande. Não era um ator teatralmente exagerado. Sabia controlar as emoções na medida certa e o melhor: era extremamente brasileiro. Estava no Cinema Novo com “Os Fuzis”, de Ruy Guerra, de 1964, e na profícua construção de um cinema nacional dos anos 1970 e 1980, como o megassucesso “Dona Flor e Seus Dois Maridos, de Bruno Barreto, de 1976.

 

Malandragem brasileira com “A Rainha Diaba”, ao lado de Milton Gonçalves

 

Nelson tinha a brasilidade que tanto se ansiava no ator moderno. Não foi à toa que, quando caiu nas graças da tevê brasileira, viveu um dos maiores e mais difíceis dos personagens que habitaram o imaginário popular: Lampião, na minissérie histórica que movimentou o Brasil de 1982 e não tirou Nelson mais da teledramaturgia.

 

 

Até Chico Xavier surgir, o anti-herói nordestino era a grande referência para as massas que o aplaudiam de pé.

O teatro me trouxe essa capacidade de caminhar bem por todas as linguagens

Nelson Xavier

Eduardo Barroso/DivulgaçãoA frase foi pronunciada por Nelson Xavier num CCBB lotado para homenagear a memória de Plínio Marcos. Ao lado de Emiliano Queiroz (o primeiro Veludo, de “Navalha na Carne”) e dos atores Jones de Abreu e João Paulo Oliveira, ele viu um filme passar diante dos olhos, com esquetes, filmes e depoimentos, numa espécie de documentário ao vivo. “Cheguei aqui um pouco cansado. Mas saio forte em ver essa história passar por mim”, agradeceu.

Nelson nunca passou despercebido, nem com os tipos coadjuvantes de novelas que já caíram no esquecimento. Sempre brilhou intensamente na medida que lhe cabia. Era um ator de primeira grandeza. Um dos últimos trabalhos no cinema “Despedida”, de Marcelo Galvão, de 2015, rendeu-lhe o Kikito de Melhor Ator em Gramado. Com Juliana Paes, o filme é sereno e poético, como deve ter sido o seu encontro com a morte.

 

https://www.youtube.com/watch?v=1OkyvDDJeGU

 

Assista a Nelson e Fernanda Montenegro numa leitura dramática de “Eles Não Usam Black-tie”

 

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