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“O Povo Contra O.J. Simpson” é a melhor série de 2016

A série — que está sendo exibida pelo canal fechado FX — não foca em Simpson, mas sim em todos os outros envolvidos no caso

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Ainda não chegamos nem à metade de 2016 e já arrisco que “American Crime Story: O Povo Contra O.J. Simpson” é a melhor série do ano. Entendo que a sexta temporada de “Game of Thrones” nem estreou, mas será difícil superar esta crônica sobre o assassinato, em junho de 1994, de Nicole Brown Simpson e Ronald Goldman, e o veredito que inocentou Simpson em outubro de 1995.

Mas como interessar o público numa trama com mais de 20 anos de idade cujo final já é conhecido por todos? Numa jogada de mestre, os roteiristas e produtores criaram uma série sobre o caso O.J. Simpson sem focar em Simpson, mas sim em todos os outros envolvidos no caso. Diferentemente do ex-jogador de futebol americano, nenhum deles era conhecido pelo público. Após “American Crime Story: O Povo Contra O.J. Simpson” o público saberá não só quem eles são, mas também tudo pelo que passaram.

Justiça racial
O primeiro episódio da série começa com as famosas imagens gravadas quando Rodney King, um taxista de Los Angeles, era espancado por quatro policiais. Um cinegrafista amador mandou as imagens para uma rede de notícias e um barril de pólvora foi aceso. Rodney, um negro, estava desarmado e claramente não apresentava perigo algum enquanto quatro policiais brancos o espancavam com cassetetes. Após uma investigação, os quatro policiais, pegos em flagrante, foram inocentados pelo júri. Confrontados com essa injustiça, a população negra de Los Angeles se revoltou e partiu para a rua. 53 pessoas morreram, 2.383 foram feridas e U$ 1 bilhão de prejuízos foi registrado.

O último episódio termina com a absolvição de Simpson, claramente culpado pelos assassinatos. Contrastando os dois vereditos, tanto o do primeiro episódio quanto o do último, existe um certo “equilíbrio” da justiça, aonde quatro policiais brancos foram inocentados por violentarem um negro inocente e, no final das contas, um homem negro é inocentado por matar duas pessoas brancas. É claro que o velho olho por olho não é justiça, especialmente quando as vítimas são todas inocentes. Mas a série não quer opinar sobre a culpabilidade de Simpson, e sim explicar o que levou ao veredito.

Causa ganha
O time da acusação, com Marcia Clark (aqui vivida por Sarah Paulson) e Christopher Darden (Sterling K. Brown) tinha amplas provas para condenar O.J. Nicole Brown Simpson catalogava em seu diário as inúmeras ameaças e violências que sofria do ex-marido, enquanto ainda eram casados e após o divórcio. Em 1989 Simpson foi réu confesso de violência doméstica.

Além disso, uma testemunha relatou que viu Simpson fugindo da casa da ex na noite do crime, dentro de um Ford Bronco branco. Sangue do ex-jogador foi encontrado no carro, no quarto da vítima, na sala de estar da vítima, em sua própria casa e numa luva ensaguentada encontrada próximo aos corpos de Nicole e Ronald. Simpson tinha um corte na mão. Em sua casa, acharam o par da luva ensanguentada.

A promotoria concluiu que a causa estava ganha pelo tanto de evidências contra ele. Mas a superliga da defesa não quis dar valor às provas. Afirmou que a polícia plantou provas para incriminar Simpson. O motivo: racismo sistemático. Episódios como o de Rodney King aconteciam diariamente e este era apenas mais um. A cereja do bolo foi o detetive Mark Fuhrmann, responsável por coletar as provas, que foi exposto como um racista por uma série de fitas com entrevistas antigas para um projeto de roteiro cinematográfico.

É claro que a construção da narrativa pela qual O.J. se livrou da prisão é muito mais complexa—a própria série leva 10 episódios para contar esta história—mas o que torna “American Crime Story: O Povo Contra O.J. Simpson” a melhor série do ano e provavelmente uma das melhores da década, é a forma usada para explicar este momento histórico, em que se revelou a sistêmica violência contra negros e outras minoridades pelo sistema de justiça.

Fama e cinismo
Quando um dos maiores astros da história do esporte mais popular do país é acusado de matar violentamente a ex-mulher e o amigo dela, a imprensa nacional para de se dedicar aos outros assuntos do dia. Não existe e nem existirá gênero de crime e personagens mais propícios ao circo midiático de um país. E com a forte atenção da imprensa, todas as peças do tabuleiro querem se movimentar. Aqui está a maior sátira da série: ninguém está preocupado com o futuro de O.J. Simpson, mas sim com suas próprias aparências e discursos.

A equipe de defesa é um poço de cinismo. Três advogados famosos disputam todas as movimentações do caso. Robert Shapiro (John Travolta) é a maior diva de todas. Como foi o primeiro a ser contratado, espera ser identificado como o líder inquestionável da defesa. Só que fica pressionando O.J. a fazer um acordo e assim resolver o caso, a fim de coletar logo seus louros e seu salário. À medida em que Cochran vai sugando a equipe para o seu lado, Shapiro fica cada vez mais propenso a chiliques. F. Lee Bailey (Nathan Lane) é mais comedido e vai se jogando de um lado para o outro. Primeiro defende Shapiro e, quando este se nega a pagar-lhe um salário, começa a mudar de lado.

Johnnie Cochran é o astro da série. Aqui retratado por Courtney B. Vance, ele age como uma força da natureza, deslumbrando a todos com sua retórica excelente. Além de excelente advogado é também um político, movendo-se habilmente entre os outros advogados, a imprensa e o próprio cliente para conseguir tudo o que quer.

E logo fica aparente que o que ele quer não é representar O.J. Simpson num caso de assassinato doméstico. Ele quer escancarar o racismo institucional dos Estados Unidos. É um objetivo maravilhoso. O que incomoda é que ele tem de se imbuir de muito cinismo para consegui-lo. Sua única chance é representar um cliente famosíssimo para assim ter o maior oratório do mundo. Que se tratava de deixar o assassino de Nicole Brown Simpson e Ronald Goldman livre é mero detalhe.

A defesa é punida pelo excesso de confiança. Marcia Clark parece incapaz de perceber que sua acusação está sendo desintegrada por Cochran. Como mulher, ainda finalizando seu próprio divórcio e lutando pela guarda dos filhos, é massacrada pelo machismo da imprensa. Julgada mais pela sua aparência do que pelo seu trabalho, é constantemente atacada. Páginas e páginas sobre as mudanças em seu corte de cabelo foram escritas, impressas e espalhadas pelos jornais do país. Talvez seja ela a mais beneficiada desta série.

Amigas do casal Nicole e O.J. aparecem nos jornais e talk-shows para falar tudo que sabem e até o que não sabem sobre o tempo que os dois passaram casados. Quem tinha as informações mais picantes recebia mais dinheiro para contar sua história. Marcia Clark desiste de chamar a testemunha que viu O.J. fugindo da cena do crime porque ela troca uma entrevista na televisão por dinheiro. O.J. Simpson chega a parecer um bebê chorão nas reuniões com seus advogados. Completamente alheio ao que está acontecendo, recicla falas que ouviu na época de jogador. Resta a ele ser coadjuvante da própria história.

Os únicos que se salvam do circo são Robert Kardashian (David Schwimmer) e Christopher Darden. Kardashian é o melhor amigo de Simpson e o único que se preocupa com ele. Volta e meia interrompe a conversa dos advogados para defender os interesses do amigo. No começo da série acredita cegamente que o amigo é inocente. Mas nem quando decide que ele é culpado consegue abandoná-lo. É o menos cínico — único que pensa no amigo.

Darden, o promotor negro, vive o conflito entre se calar diante das ofensivas de Cochran e trabalhar para condenar O.J. Seu conflito se dá porque enxerga que a acusação de homicídio duplo está perdendo espaço para o discurso político da bancada de defesa. Se criticar Cochran, porém, será acusado por ele de ser uma marionete de seus patrões brancos. Suas frustrações são as mais importantes dentro do drama da série.

Tempos modernos
Hoje O.J. Simpson está preso por outro crime. Mas o legado de seu julgamento continua ecoando. Milhares de internautas enxergam uma conspiração policial no julgamento de Steven Avery, famoso por “Making a Murderer”. Em 2010 o Brasil parou para acompanhar o caso de Eliza Samúdio e do goleiro Bruno. Hoje, os Estados Unidos ainda enxergam cenas como esta, em que um homem negro desarmado é baleado nas costas por um policial branco.

“American Crime Story: O Povo Contra O.J. Simpson” ajuda a entender.

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