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As ficções (e as verdades) de Pedro de Andrade Alvim

Todos esses interesses pessoais e profissionais pontuam as paredes do quarto andar do Museu dos Correios

atualizado

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Bernardo Scartezini/Metrópoles
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1 de 1 foto de abre (2) - Foto: Bernardo Scartezini/Metrópoles

Pedro de Andrade Alvim dá aulas de pintura e de história da arte na Universidade de Brasília (UnB). Sujeito de sorte. Porque, mesmo adulto, pode seguir desenrolando aquele fio que começou a desenrolar lá atrás, ainda garoto, quando primeiro se aproximou das histórias em quadrinhos e do cinema.

Todos esses interesses pessoais e profissionais, as aventuras de Pedro Alvim, pontuam as paredes do quarto andar do Museu dos Correios. Até 3 de setembro, o prédio do Setor Comercial Sul abriga a mostra “Lugares e Ficções”. Passeia-se por esta exposição como quem vai recolhendo o novelo deixado pelo caminho. Quadro a quadro.

E passear pela exposição, na companhia do próprio Pedro Alvim, funciona como uma aula. Atendendo a pedido da coluna “Plástica”, ele percorre conosco “Lugares e Ficções”, escolhendo algumas das peças para comentá-las em particular.

Esta é a sua primeira mostra individual desde 2010. Alguns destes quadros derivam justamente daquela ocasião, quando expôs no espaço cultural do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Caso de “Encruzilhada”, pintura em tinta acrílica sobre tela, que vinha encafifando seu autor havia sete anos…

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Quando se preparava para cumprir a mostra do STJ, Pedro andava de bicicleta pelas cercanias do tribunal. Boa parte daquela área entre a Catedral e o Setor de Embaixadas, que hoje compõe o Setor de Autarquias Sul, era na época uma sucessão de canteiros de obras, rasgando o cerrado e as pistas de asfalto. Com um caderninho, ele esboçava em esferográfica as cenas que se apresentavam.

Juntando dois desenhos feitos no caderno, criou uma terceira paisagem, em parte ampliada das anotações em campo, em parte criada no ateliê. O fundo do cenário, composto por uma montanha impossível na topografia brasiliense e um mui familiar esqueleto de prédio em construção, logo se resolveu aos olhos do pintor. Mas o descampado pouco abaixo, onde ele cavava às pinceladas uma sugestão de buraqueira na pintura plana, permanecia distante do efeito desejado.

Assim se passaram seis meses, três anos, sete anos. Até Pedro atingir a atual relação de cores, uma combinação de verdes e marrons que, para ele, resolveu a paisagem, amarrou todo o cenário, unindo o horizonte lá no fundo com o primeiro plano cá abaixo… Porém, quase ao centro da tela, pouco acima da buraqueira onde passou anos a labutar, ele resolveu deixar um resquício de sua insatisfação, através da sombra azulada de uma placa, quase por completo apagada, mas ainda discernível.

“O que me interessa, como espectador de outros pintores e também como espectador dos meus próprios quadros, muito mais do que a representação de alguma coisa, é o processo da pintura, a evolução trabalho, o pensamento visual”, explica Pedro Alvim. “Este elemento, por estar assim meio apagado, funciona como um recurso visual, quase como se ele retivesse o tempo dentro da tela, todo o tempo que demorou para o trabalho ser feito.”

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Tais sugestões (ficções?) parecem surgir nas telas de Pedro Alvim quase acidentalmente. Mas não, não se engane, incauto visitante, que aqui não há acidentes – apenas artifícios. Então, se algumas das molduras dos quadros parecem pouco convencionais, pode crer que foram feitas com todo esmero de um pintor, foram criadas para também fazer parte das composições que elas enquadram.

“Penso nestas molduras como a falsificação do efeito rococó”, sugere o professor, numa provocação. “Quero lidar com essa coisa histórica das artes visuais, que trazia um símbolo de diferenciação social e cultural, a moldura sendo feita para entronizar a pintura. É meio cafona, mas, ao mesmo tempo, temos um certo amor por isso. Traz o lado decorativo do barroco, o lado de ornamento da arte, de buscar o material precioso, provocando uma carícia, uma cócega, um carinho erótico no olho.”

A ideia de usar das molduras como instância narrativa que desenvolva a pintura por ela enquadrada vem sendo desenvolvida por Pedro desde 1990, quando lançou mão de tal elemento para vencer as paredes revestidas de carpete preto na antiga Galeria Itaú do Setor Comercial Sul. Aqui nas paredes brancas do Museu dos Correios, não muito distante da hoje extinta galeria, uma moldura com fita de tecido, submetida a um tratamento químico que a vitrificou, empresta um tanto de expressionismo à pintura “Querela das Atribuições”.

Pedro Alvim quis remontar, nessa cena, a um ambiente seu conhecido, o “museu imaginário e compartilhado” onde vivem seus colegas historiadores da arte. Daí o gesto meio burlesco e os personagens de ar um tanto circenses que habitam um cenário de livros e cavaletes. Um mundo onde se discute ainda hoje a autoria de quadros renascentistas (Rafael ou Perugino? Ticiano ou Giorgione?) e a pertinência de mitos da antiguidade clássica (de fato houve um pintor chamado Apelles?).

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Não muito distante emocionalmente da “Querela das Atribuições”, e bem próxima espacialmente dessa pintura, ocupando um córner de paredes da galeria, percebe-se um tema repetido por Pedro Alvim. Os dois quadros recentes soam como duplo um do outro: “Pintor da Mala” e “O Velho Pintor”. De novo, não se trata de acidente ou acaso. Trata-se de uma primeira e uma segunda tentativa.

Pedro encontrou no YouTube uma entrevista de Giorgio de Chirico concedida no começo dos anos 1970. O velho pintor parecia mal e mal tolerar a presença da equipe de reportagem em seu ateliê. Às perguntas, respondia com resmungos atravessados, enquanto prosseguia trabalhando ao cavalete.

Ao chegar em seu estúdio no dia seguinte, Pedro quis pintar de memória a cena de Chirico em vídeo. Acabou se desviando no mundo real, no objetos ao redor, e o resultado mais lhe pareceu autorretrato (“Pintor da Mala”). Na segunda tentativa, conseguiu ser mais fiel à figura de Chirico (“O Velho Pintor”). Outra diferença de um quadro para outro é que ora Pedro usou tinta óleo e ora tinta acrílica.

“Não sei até que ponto é algo da nossa formação cultural, mas o óleo parece mais nobre”, compara Pedro Alvim, lamentando que uma alergia violenta o tenha afastado do material quando era ainda iniciante. E mesmo hoje, anos mais tarde, utiliza óleo apenas eventualmente. “Uso a tinta acrílica como uma piada para mim mesmo. Na tentativa de conseguir uma pintura que tenha a espessura e a sensualidade do óleo. Acaba sendo como uma contrafação, uma falsificação.”

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O artista como falsificador, podemos pensar nessa provocação de Pedro Alvim, para entender uma vertente intensa de seu trabalho. São os quadros da série que o autor chama de “tramóias”. Inspirados justamente por Giorgio de Chirico (1888-1978) e por sua pintura metafísica de lugares impossíveis, arquiteturas fantásticas e quadros dentro de quadros.

“Gosto dessa ideia de tramoia, no sentido da palavra usado na linguagem teatral. A tramoia é o que está atrás do palco. Onde temos os contra-regras subindo e descendo cenários. A nossa cabeça também funciona assim. Vamos criando ficções para conseguir lidar com o mundo. Apenas através delas podemos falar de certos aspectos da realidade.”

Uma dessas máquinas ficcionais, a ser vista no Museu dos Correios, está revelada na tela “Interior de Galé”. Originalmente, em seus esboços, Pedro pensara num interior de uma galera, com remadores em trabalhos forçados. Dessa ideia original restou quase que apenas título, sugerido pelo autor como num aceno para o que está além da tela.

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Pois nessa coleção de cenários impossíveis, que parecem perfurar a tela para chegar ao que está além dela, de repente desponta uma paisagem polar. Visão especialmente impactante no contexto da galeria. Um glacial a ocupar solene uma das paredes de “Lugares e Ficções” e atrair a atenção mesmo do visitante mais desligado.

“Spitzberg”, o título do quadro, se reporta à maior das ilhas do arquipélago norueguês de Svalbard. Mas também aqui, sob a névoa branca de gelo, há mais a ser visto do que se abre de imediato aos olhos. Pedro Alvim está a abraçar sua paixão pelo romantismo. Em especial, seu apreço pela obra de François-August Biard (1799-1882), pintor romântico francês que dedicou seus maiores esforços a retratar o círculo polar ártico.

Biard foi o tema da tese de doutorado de Pedro Alvim, defendida em Sorbonne no início dos anos 2000. Desde então, ele vem se correspondendo com colegas como o finlandês Osmo Pekonen, pesquisador e professor da Universidade de Jyväskülla. Há três meses, Pekonen abriu por lá uma retrospectiva da obra de Biard, a primeira mostra individual dedicada ao autor na Lapônia.

Pedro de Andrade Alvim viajou como convidado especial para Jyväskülla. Pôde reencontrar François-August Biard. E conhecer – pessoalmente – o que já conhecia havia tanto tempo.

No cantinho inferior esquerdo de “Spitzberg”, a figura humana, mínima, parece prestes a sumir diante da imensidão.

Bernardo Scartezini/Metrópoles
Libreto da mostra “Lugares e Ficções”: desenho a partir de “Spitzberg”

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