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Não gostou, me processa

Por Erick Vidigal Após 15 anos estudando e lecionando Direito Processual Civil, 10 anos advogando e outros tantos assessorando autoridades do Judiciário e do Ministério Público, cheguei à conclusão de que o processo judicial é, em si mesmo, uma figura jurídica que trabalha contra sua proposta original, vale dizer, a de servir como instrumento de repacificação social. Por […]

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Por Erick Vidigal

Após 15 anos estudando e lecionando Direito Processual Civil, 10 anos advogando e outros tantos assessorando autoridades do Judiciário e do Ministério Público, cheguei à conclusão de que o processo judicial é, em si mesmo, uma figura jurídica que trabalha contra sua proposta original, vale dizer, a de servir como instrumento de repacificação social.

Por tal razão, para minha primeira participação nesta coluna, decidi ignorar momentaneamente a análise das consequências que nos atingem diariamente como destinatários passivos das grandes decisões judiciais, para honrar este début com o olhar voltado para um tema que reputo ser dos mais caros no que se refere à manutenção da paz social: a educação.

Algum leitor mais afoito poderia indagar: “Mas o que o tema da educação tem a ver com o direito?”. Absolutamente tudo, respondo eu, convidando-os a acompanhar o raciocínio.

Em nossa formação acadêmica, formação que não ignora lições introdutórias de economia, sociologia, ciência política e teoria geral do processo, somos adestrados para enxergar os conflitos estabelecidos entre sujeitos com pretensões opostas – a lide – como uma espécie de célula cancerígena do corpo social. Nesse contexto, o receio de uma metástase social leva o Estado a se organizar de modo a esperar uma litigiosidade constante, assumindo uma postura paranoica, esquizofrênica e reativa.

A legislação processual estabelece o cenário do confronto e as regras da batalha, ao passo em que magistrados, membros do Ministério Público e advogados substituem o verdadeiro titular do direito em sua vontade e autonomia, entregando-lhe, ao final de alguns anos, uma resposta nem sempre eficaz e, na maior parte das vezes, ininteligível para o cidadão comum.

O resultado desse apego excessivo ao tema da lide é bem mais expressivo em países como o Brasil, cujas raízes fincadas nos tempos de colônia ainda impedem uma real emancipação do indivíduo, que enxerga no Estado a figura do grande pai, do provedor maior – daquele capaz inclusive de tomar as decisões em nome de seus cidadãos. É assim, por exemplo, com o que se refere aos contratos civis, às relações trabalhistas, à administração da propriedade e até mesmo à obrigatoriedade do exercício de direitos políticos.

Impedimentos
Apenas para ilustrar, no Brasil não podemos abrir mão do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) em troca de um salário melhor, capaz de assegurar uma vida mais confortável para nossa família; não podemos adquirir imóveis rurais apenas para apostar na valorização imobiliária, sem corrermos o risco de ver nosso patrimônio ser desapropriado, quando não saqueado, invadido ou danificado; não podemos exercer a atividade de empresa sem que o Estado avance por cima da personalidade jurídica e alcance o patrimônio dos sócios, ignorando as diversas formas legais de responsabilização societária conforme a natureza da sociedade; não podemos exercer o direito fundamental da livre iniciativa em um mundo virtual sem indicar o endereço de um estabelecimento comercial físico para obter o alvará de funcionamento; enfim, para resumir, basta lembrar que, há bem pouco tempo, não podíamos nos divorciar sem ouvir a opinião de um promotor de Justiça e sem a autorização do Estado-Juiz (hoje até podemos, em raras situações, mas não sem abrir mão da obrigatoriedade da atuação de um advogado).

Diante desse quadro, natural que a sociedade brasileira adote a litigância perante o Estado como pilar cultural, ignorando por completo aquilo que Giovanni Pico della Mirandola, ainda no século XV, apontava em seu “Discurso sobre a dignidade da pessoa humana” como sendo o principal elemento diferenciador entre anjos e homens, aquilo que melhor nos caracteriza e que pode ser resumido em uma única expressão: autodeterminação (o soberano direito à opção, que decorre do simples fato de ser livre).

“Mas e a educação?” – insistiria o mesmo afoito e agora impaciente leitor destacado acima. Vamos lá.

A lógica se desenvolve em passos simples: a) o conflito entre sujeitos com pretensões opostas (em “juridiquês” chamamos de lide) ameaça a paz social; b) a lide real (conflito no plano social) envolve necessidades, interesses e posições; b) a lide é judicializada e se torna litígio (lide formal); c) o Estado-Juiz não é preparado tecnicamente para alcançar as necessidades e os interesses, vez que se encontram no plano psicológico; d) o Estado-Juiz resolve o litígio (lide no plano formal do processo) decidindo tão somente acerca das posições submetidas a juízo; e) uma parte vence e outra perde; f) soluciona-se a lide formal, mas permanece a tensão no meio social.

Os números apresentados recentemente pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) servem bem para ilustrar a realidade da Justiça brasileira, uma estrutura administrativa cujos gastos aumentam em cerca de R$ 5 bilhões a cada ano, e um acervo processual com acréscimo anual de cerca de 30 milhões de processos — o último relatório do CNJ aponta um custo de cerca de R$ 70 bilhões e um acervo de aproximadamente 100 milhões de processos em tramitação

Eis o meu ponto: a proposta da solução dos conflitos entre particulares, pela via processual, está claramente, e sob vários aspectos, esgotada.

Por certo que se tal afirmação fosse feita em países mais desenvolvidos economicamente, seria recebida como simples manifestação do óbvio, uma vez que, em tais países, a autonomia da vontade não é apenas assegurada; é estimulada.

Livre iniciativa
É a livre iniciativa que gera empregos. É a livre iniciativa que paga impostos. É a livre iniciativa que inova tecnologicamente. Natural que, pela livre iniciativa, sejam alcançadas as soluções dos conflitos.

Países onde o poder público dedica sua atenção para assegurar e estimular o exercício da autonomia do indivíduo estão firmados na premissa de que uma sociedade que precisa de juízes para resolver seus conflitos particulares não pode ser considerada civilizada.

E é aí que a questão da educação surge em uma perspectiva de instrumento de evolução cultural.

Nossa sociedade é extremamente litigante. O tal “jeitinho brasileiro”, aquela característica que faz com que o brasileiro queira levar vantagem em tudo, a qualquer preço, e que talvez seja o grande responsável pelo esgarçamento do tecido ético nos dias atuais, é invocado e alcançado até mesmo pela via processual, pois muitos apostam no processo como fonte de demora e ineficácia. É aquele fenômeno tipicamente tropical do “não gostou, me processa”, gêmeo siamês do “sabe com quem está falando?”

Nesse contexto de constante desesperança, em que se verifica o crescimento anual – em milhões – do número de processos submetidos à apreciação estatal, há de se experimentar não apenas tratamentos novos para amenizar os sintomas de uma doença degenerativa antiga e persistente. Deve-se, acima de tudo, buscar a adoção de medidas profiláticas, a fim de evitar essa realidade litigante contínua.

Registro aqui o ponto central do meu argumento: precisamos evoluir como sociedade. Tal evolução, contudo, depende diretamente da autoconsciência de um excesso de egoísmo e da real necessidade de trabalharmos todos juntos em busca de uma sociedade fraterna, comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, tal qual estabelecido no preâmbulo da Constituição de 1988.

Não é desnecessário lembrar que esse processo de [re]educação deve começar em casa, conduzido pela família, microcosmo social voltado a preparar os indivíduos para sua inserção no macrocosmo social.

Exemplo em casa
O excesso de egoísmo acima mencionado é fruto direto da desconsideração da pessoa do outro – do alter. É em casa que aprendemos a ser altruístas, quando nossos pais nos ensinam a compartilhar, quando nos ensinam os limites do que é de cada um e principalmente nos ensinam os limites do “não”. É em casa que devemos aprender que é a partir do reconhecimento da pessoa do outro – dos limites do outro – que se torna possível definir os limites de nosso próprio ser.

É certo que, nos tempos atuais, grande parte das famílias vem empurrando suas responsabilidades com a formação do indivíduo social para a escola, o que termina por nos entregar, nas salas de aula das faculdades, alunos que sequer respondem a um “bom dia” dado pelo professor; que não entendem a importância das boas práticas de relacionamento social; que são extremamente mimados; e que acreditam que a ordem constitucional brasileira estabelece uma sociedade fundada somente em direitos e sem obrigações.

Há duas semanas, Brasília foi palco de dois crimes bárbaros, em que duas jovens – Louise Ribeiro e Jane Carla Fernandes – foram mortas por ex-namorados sem limites que, nas mais que precisas palavras do pai de Louise, “não soube[ram] aceitar um ‘não’ como resposta”.

A pergunta retórica que fica é a seguinte: a quem cabe o papel de impor limites aos jovens, preparando-os para respeitar os limites impostos pela sociedade?

“A criança é o pai do homem”, diz o provérbio oriental já repetido, com variações e reivindicações de autoria por diversos pensadores. Coelho Neto, por sua vez, dizia que “é na educação dos filhos que se revelam as virtudes dos pais.”

Falta de limites
No caso de Louise já se vê claramente a falta de limites e o excesso de cuidado por parte da família do jovem mimado e sem limites – aquele que não sabe aceitar um “não” como resposta. Aquele que, em vez de ser reprovado publicamente pela família, aguarda ser defendido pela nova advogada, contratada após os advogados anteriores deixarem o caso, por discordância com a linha de defesa desejada [provavelmente a família quer que os advogados aleguem inocência, para que o rapaz retorne logo ao harmonioso convívio social].

Certamente incontáveis conflitos como esses poderiam ter sido evitados se a atenção da sociedade estivesse mais voltada para a educação do que para o processo. Se os algozes de Louise e Jane tivessem sido submetidos à construção de uma personalidade fundada em sólidos valores morais e éticos, tivessem aprendido em casa os limites do espaço alheio e pautassem suas condutas em ideais de nobreza, combate à covardia e proteção aos mais fracos, não estaríamos agora a esperar, por parte do Estado, a resposta de um processo judicial, resposta essa que, por melhor que seja, jamais será capaz de alcançar o que a educação prévia poderia ter evitado.

Arquivo pessoal

Por Erick Vidigal, doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC-SP e professor do Centro Universitário de Brasília (UniCeub) e da Escola Paulista de Direito (EPD)

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