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Ouvindo histórias de domésticas, vi como sou uma mãe privilegiada

Essa relação é fruto da desigualdade social e sobre como ainda traduz uma série de ranços da nossa sociedade

atualizado

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Arquivo Pessoal
solano miguel noélia
1 de 1 solano miguel noélia - Foto: Arquivo Pessoal

Graças ao trabalho da Noélia, saio de casa sossegada, sabendo que meus filhos estão bem cuidados. Quantas de nós podemos contar com esse tipo de ajuda?

Coisa difícil na vida é a gente se dar conta dos nossos privilégios. Pois os meus saltaram na minha cara na última semana, enquanto eu escrevia uma reportagem para a Revista AzMina sobre trabalho doméstico. Ouvindo e contando as histórias de mulheres empregadas domésticas, pude lembrar o quanto eu sou uma mãe privilegiada.

Não que eu já não soubesse disso. Mas talvez nunca tivesse parado para pensar na complexidade das relações entre trabalhadoras domésticas e patroas. Nunca havia refletido tão profundamente sobre como essa relação é fruto da desigualdade social e sobre como ainda traduz uma série de ranços da nossa sociedade.

Eu, como mulher branca e rica, posso dispor do trabalho de uma outra mulher, pobre, que sai da casa dela para cuidar da minha. Quantas de nós, mães, podemos contar com esse tipo de ajuda?

A mulher da minha vida se chama Noélia Ferreira de Souza dos Santos. Ela é baiana, tem 40 anos, casada e mãe de três filhos – de 19, 12 e 7 anos. Temos uma relação formal: eu e meu marido pagamos salário e direitos trabalhistas (nossa obrigação) e ela nos devolve com serviços (o dever dela). Mas, na verdade, é muito mais que isso.

Noélia já trabalhava na casa do meu marido quando eu cheguei, com Miguel na barriga. O que foi uma sorte: enquanto muitas das minhas colegas grávidas quebravam a cabeça para saber o que fazer com o neném ao fim da licença maternidade, eu tinha a segurança da existência dela.

O mesmo, veja só, não aconteceu com ela. Noélia, arrimo de família, não pôde optar por ficar mais tempo em casa com seus bebês. Deixava a filha caçula, de meses, aos cuidados e uma parenta, que, também amamentando, alimentava a menina.

Arquivo PessoalNoélia é dependente das creches públicas. Penou para conseguir uma vaga e, agora, que a filha já tem idade para ir ao colégio, não sabe como dar conta da menina no contraturno. Com esforço, paga uma cuidadora, vizinha dela, que lhe cobra R$ 200 pelo serviço. “Duzentos reais! E não dão nem um banho na menina…”, reclamou ela comigo, esses dias. E, enquanto isso, eu, na minha bolha, ficava pesquisando sobre pedagogias de educação infantil…

Noélia não apenas lava, passa, cozinha e cuida das crianças quando eu e meu marido não estamos/podemos. Ela olha pelos meus filhos como se dela fossem. No celular dela, há fotos e vídeos das minhas crianças, misturadas às da própria família. Quando Miguel fez 1 ano, ela comprou um carrinho eletrônico que se transformava em robô e saía girando pela sala. Achei aquilo de uma delicadeza sem tamanho!

Noélia às vezes não limpa a parede suja de café ou dá aos meninos coisas que eles não podem comer. Eu fico chateada, reclamo, do alto da minha autoridade. Mas quantas vezes eu também não correspondo a todas as expectativas da minha chefia? Quantas vezes eu não fiquei enrolando para escrever um texto, entreguei tudo atrasado?

Como bem disse uma das entrevistadas da reportagem: as mulheres que trabalham na nossa casa são nossas maiores aliadas. Noélia, obrigada por existir por dar tanto de você para a minha família.

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