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Para o juiz quase nada é preto no branco, decidimos na “área cinzenta”

Manter um senhor confinado nos horrores de uma cela só por ele não ter casa não me parecia nada justo…

atualizado

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Arquivo Pessoal
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1 de 1 WhatsApp Image 2017-08-11 at 12.08.17(1) - Foto: Arquivo Pessoal

Seu Daniel* era um antigo morador de rua da rodoviária de Planaltina. Tinha mais de 50 anos e, até então, ficha penal limpa sem nenhum registro criminal. Um dia, bebeu além da conta, e puxou o celular do bolso de alguém que passava. Foi preso em flagrante na hora e o celular devolvido ao dono.

Na época, como ainda não existia a audiência de custódia**, Seu Daniel só foi levado a um juiz – no caso, eu – uns 40 dias depois do fato. A prisão já o havia maltratado talvez mais que todos os seus anos de rua. Acostumada a receber ali em audiência réus na faixa etária dos 20, ver os tormentos da prisão cravados na pele de alguém tão mais velho me marcou; o estado de Seu Daniel era deplorável, parecia ter mais de 70, mal conseguia falar.

Tudo recomendava a concessão de liberdade a ele, a não ser um detalhe: morador de rua, ele não tinha residência fixa, o que, na prática, acaba sendo um dos requisitos da liberdade provisória.

A promotora protestou na hora e opinou por manter a prisão.

Fiquei entre a cruz e a espada. Aliás, entre a cruz e a espada é um lugar comum para o juiz: nem tudo, ou quase nada, é preto no branco; decidimos situações “área cinzenta” o tempo todo. Por um lado, de fato, soltar alguém que depois não se teria nem como intimar para os demais atos do processo era arriscado. Por outro, manter esse senhor confinado nos horrores de uma cela só por ele não ter casa não me parecia nada justo. Na verdade, era penalizá-lo duas vezes: a primeira por ter nascido em um país que não conta com assistência social devida para retirar essa pessoa da rua; depois, justamente porque esta pessoa continua abandonada na rua, as autoridades desse mesmo país a mantêm na prisão.

Algo em Seu Daniel me soava confiável. Os calos, as rugas, o jeito manso de falar, mas, especialmente, ter tanta idade e nenhuma ocorrência criminal anterior. Uma certeza dava para ter: não estava na frente de um criminoso, mesmo considerando a história do celular.

Lembrando que a rodoviária de Planaltina fica a 100 metros do fórum, propus: “Seu Daniel, eu vou soltar o senhor, mas o senhor vai ter que se comprometer a vir aqui falar comigo toda sexta-feira. Toda sexta-feira, sem falta, o senhor vai atravessar a rua e bater aqui na minha porta para dar um alô. Assim, se eu precisar falar com o senhor de alguma coisa do seu processo, vou conseguir falar. O senhor não pode falhar. Se passar uma sexta-feira sem que venha aqui, a gente vai decretar sua prisão novamente.”

Ele prometeu, tentando um sorriso, que cumpriria o nosso acordo. Concedi a liberdade. Ele foi embora e, como na verdade ele se apresentava na secretaria da vara e não a mim diretamente, me esqueci do caso.

Meses depois, a defensora do caso me chama na minha sala dizendo: “Dra., lembra do morador de rua que a senhora soltou? Ele está aqui. Vem ver.”

Fui ao corredor e encontrei aquele senhor negro, forte, alto, parrudo, já com outra estampa. Deveria estar usando suas melhores roupas, pois, não me esqueci, usava calça com cinto e óculos escuros. Ele queria me mostrar a sua carteira de trabalho. Não entendi. Era que a cada entrada no fórum ganhava uma etiquetazinha colorida que colava na sua CTPS para um dia, dizia ele, “mostrar tudo bem bonitinho para a juíza”.

Fiquei boba, fiquei emocionada, fiquei feliz e principalmente fiquei agradecida por ver que a aposta na costura de uma situação mais justa para aquele caso tinha dado certo. Tinha chance de dar errado, a promotora não estava errada, mas naquele caso deu certo. Seu Daniel continuou respondendo pelo seu erro, mas em liberdade, e no final, apesar de condenado, teve direito a regime aberto, apagando de uma vez por todas essa história de prisão de sua vida.

*A história é real, mas o nome do réu foi alterado.

** é a apresentação do preso em flagrante perante um juiz, permitindo-lhes o contato pessoal, de modo a assegurar o respeito aos direitos fundamentais da pessoa submetida à prisão. Decorre da aplicação dos Tratados de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil.


Gabriela Jardon é juíza do Distrito Federal desde 2005. Formada em Direito pelo UniCeub com mestrado em Direitos Humanos pela Universidade de Essex, na Inglaterra, escreve no Metrópoles todo domingo.

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